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segunda-feira, 11 de julho de 2016

Retrato de um viciado quando jovem

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Por que alguém se propõe a relatar a história da própria vida se sua biografia não é admirável; aliás, se é horrível, cheia de vergonha, quedas e feridas? Convenhamos, a tendência de um ser humano quando leva um tombo em público consiste em disfarçar, esconder a dor e o eventual ridículo da situação. A pessoa levanta-se prontamente do chão por mais que a perna esteja roxa ou sangrando por debaixo da calça. Logo após a queda, as pessoas fingem que não sentiram dor ou tentam minimizá-la. "Não foi nada", dizem, como se o mau passo e a queda não tivessem existido. Então por que alguém escancara sua própria vida e mostra o pior de si?

Acredito que deva ser uma forma (consciente ou inconsciente) de superação, que faz parte da recuperação. Já perceberam como alguns artistas usam a arte como uma forma de superar seus próprios traumas, medos e dificuldades? Cada pessoa, cada adicto, na sua caminhada rumo à sobriedade e ao controle da própria vida, tem sua maneira de reencontrar-se consigo mesmo. E uma dessas maneiras é relembrar tudo o que ocorreu (Quem eu sou? Quem eu era? Como eu vim parar aqui?). Tudo, tudo mesmo, desde o início, desde os primeiros traumas de infância, os primeiros abusos, as primeiras experiências dolorosas. 

Bill Clegg transformou sua queda em livro e a relatou em detalhes em Retrato de um viciado quando jovem, Companhia das Letras, tradução Julia Romeu, 216 páginas. Trata-se de uma queda vertiginosa. Vemos o autor-narrador caindo de um despenhadeiro sem rede de proteção. A leitura também me levou a refletir como alguém que se drogou tanto, pôde se lembrar dos pormenores que são narradas no livro? De tantos detalhes não sei, mas imagino que o ato de escrever tenha sido um processo longo, por vezes doloroso, mas necessário e revelador.  Às vezes o autor fala de si mesmo na terceira pessoa. É uma técnica que dá muito certo, pois, com o distanciamento, Clegg consegue ver melhor, por exemplo, quem era aquela criança que sofria de uma terrível disfunção urinária e disfarçava essa anomalia para a família e os amigos. Outras vezes, quando narra a vida do Clegg agente literário bem-sucedido em Manhattan, namorado de Noah, viciado em crack e manipulador, o livro é narrado em primeira pessoa. 

O livro é de uma sinceridade brutal, atordoante. Às vezes, o simples relato dos fatos já é uma história. Os norte-americanos fazem muito bem isso. Como se fossem antropólogos, sem fazer análises psicológicas ou "achismos", limitam-se a narrar os fatos. O autor faz uma espécie de retrospecto de sua vida, contando passagens que marcaram sua trajetória como as peripécias que fazia para conseguir urinar, o terror psicológico exercido pelo pai, a fascinação por uma determinada garota e a influência que ela exercia sobre ele. Interessante notar que uma pessoa que passou a vida inteira escondendo coisas (disfunção urinária e vício em crack) chegue num momento de ruptura desse padrão e escancare a vida de modo tão contundente.