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sexta-feira, 30 de novembro de 2018

O paciente e a agonia de um país

O sonho popular das "Diretas Já" não se realizou em 1984 ante a derrota da Emenda Dante de Oliveira. Mas em 15 de janeiro de 1985, após 21 anos de Ditadura Militar, Tancredo Neves (PMDB) venceu Paulo Maluf (PDS) no Colégio Eleitoral e foi eleito Presidente da República. A vitória expressiva (480 votos para Tancredo e 180 para Maluf) do candidato do povo sinalizava um recomeço, uma esperança. Era um novo capítulo na história do Brasil. Para as novas gerações, o filme O Paciente - o caso Tancredo Neves, direção de Sergio Rezende, é uma boa reconstituição sobre o drama vivido pelo país naqueles três meses. Mas é um filme triste. Mostra toda a trapalhada dos médicos e o "bate cabeça" entre eles, a saber: Dr. Pinheiro Rocha, Dr. Renault e Dr. Pinotti. Baseado no livro de Luís Mir, o filme é uma agonia do começo ao fim. Para quem viveu no período e acompanhou os eventos pela TV, agora pode saber o que aconteceu nos bastidores, as sucessivas cirurgias, os boletins médicos diários transmitidos pelo porta voz Antonio Britto (Emilio Dantas), a foto realizada para convencer o país de que o paciente estava bem, em recuperação. A obra conta com uma excelente atuação de Esther Góes, que interpreta a esposa forte Risoleta Neves. Othon Bastos interpreta Tancredo de Almeida Neves: o presidente eleito que não chegou a tomar posse. O vice-presidente José Sarney tomou posse em seu lugar. Impossível não chorar com a música de Milton Nascimento no final. Todo o grito contido na garganta, a indignação com os erros médicos e a dor de um país saído da Ditadura Militar escorrem em lágrimas ao ver as cenas do cortejo do homem que era o símbolo da esperança, morto naquele 21 de abril de 1985, mesmo dia de Tiradentes. 

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Querida Kombini


Keiko Furukura é uma funcionária extremamente zelosa de uma kombini (loja de conveniências do Japão), treinada para servir, repor os produtos nas prateleiras e sorrir para os clientes. Mas nem sempre foi assim. Desde pequena, era uma criança que não se encaixava na sociedade, interpretava as ordens recebidas de forma literal e não compreendia o mundo (hipócrita), com suas regras não escritas. Ela, por sua vez, também nunca foi compreendida. Com 18 anos, Furukura arruma um emprego temporário em uma loja de conveniências e, finalmente, encontra seu lugar no mundo. Lá, em meio às regras impostas aos funcionários, às promoções do dia e aos produtos perecíveis, ela se sente parte de uma engrenagem. Passados 18 anos (e 7 gerentes), ela continua a trabalhar na mesma loja e na mesma função, só que agora ela já está com 36 anos e continua solteira, não sendo bem vista pela família, pelos amigos e pela sociedade. Querida Kombini, Sayaka Murata, Estação Liberdade, 148 páginas, é um romance japonês que nos faz questionar o mundo em que vivemos. Narrado em primeira pessoa, o livro nos captura desde o começo, apesar do estreitos horizontes da protagonista, cuja rotina consiste basicamente em ir de casa para o trabalho. Algumas páginas simplesmente nos deixam em absoluto estado de perplexidade. O livro nos remete à visão de uma sociedade com "caixinhas" onde ninguém pode sair do seu quadrado, sob pena de de ser taxado de esquisito ou "fora da casinha". O que é, afinal, normal? O romance também nos faz pensar sobre como somos condicionados a corresponder, desde tenra idade, às expectativas dos outros (pai, mãe, escola, amigos) e a seguir uma vida padrão (formar-se em uma faculdade, arranjar um emprego decente, casar, ter filhos etc.), como se essa fosse a única via; o molde único de uma vida normal e aceitável. Por outro lado, o leitor também é instado a pensar na solidão, na corrosão das relações sociais e na falta de afeto e diálogo nesse mundo pós-moderno e tecnológico. Daí talvez o porquê de certas pessoas precisarem de uma rotina para não se perderem, de horas extras para não terem que se defrontar com o vazio. No caos organizado de uma capital qualquer do globo, como Tóquio, Nova York ou São Paulo, onde "the city never sleeps", é mais fácil achar uma loja de conveniências aberta a qualquer hora do dia ou da noite, do que um bom ouvinte, um ombro amigo, uma face humana.

sábado, 3 de novembro de 2018

Uma névoa espessa de suspeita

O juiz Sergio Moro anunciou que aceita o cargo de Ministro da Justiça no governo Bolsonaro. Tomara que dê certo! Só que esse ato possui vários significados, nem  todos positivos. É claro que em um primeiro momento, o senso comum aplaude e a população reage de maneira positiva. Afinal, o homem que é o símbolo do combate à corrupção vai ser ministro da justiça de um país que convive com propinas, conchavos e favores há séculos (os sermões do Padre Antonio Vieira dão testemunho). 

Um dos pontos negativos é que recai uma forte suspeita sobre a parcialidade do Magistrado, que é o juiz titular da Operação Lava Jato. A aceitação do convite fornece munição àqueles que acusam Moro de partidarismo, cujo cargo que ocupa exige isenção e imparcialidade. Não sou filiado ao PT e tenho sérias críticas à sigla, mas agora tenho que concordar que Moro tirou a máscara. Um juiz abandonar a carreira é um fato que causa perplexidade, pois a magistratura, além de ser uma vocação, é uma das funções mais nobres de um Estado de Direito. A carreira de Magistrado possui as garantias constitucionais de inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos justamente para que o juiz exerça sua função com isenção e imparcialidade (CF, art. 95). Outro significado é que, além de Sérgio Moro abandonar a carreira com um trabalho não concluído, e um dos processos penais simbolicamente mais relevantes da história do Brasil, na prática, a Lava Jato pode terminar no momento em que o PT é definitivamente alijado do Poder Executivo federal, a significar que a Operação tinha réus pré-definidos e objetivo certo: afastar Lula da disputa eleitoral.

Ao tomar partido e escolher o lado de Bolsonaro (mesmo com boas intenções), logo após o pleito eleitoral, quando o TSE ainda estava tirando as urnas quentes das tomadas, Sergio Moro revela falta de isenção. Ora, pode-se perguntar, quais fatos seriam reveladores da parcialidade do Magistrado? Eis alguns: 1) de forma desnecessária (uma vez que Lula não opôs resistência), determinou a condução coercitiva do ex-presidente para depor, ao invés de intimá-lo a comparecer; 2) entregou ao Jornal Nacional gravações (conversa de Lula com Dilma) que, pela lei das interceptações, deveria destruir ou manter sob sigilo, com a óbvia intenção de criar comoção popular a impedir a nomeação de Lula como Ministro; e 3) levantou o sigilo da delação premiada de Palocci, às vésperas da eleição, com clara intenção de influir no processo eleitoral. Ao aceitar o convite para ser Ministro da Justiça de forma tão rápida, fica a impressão de que um dos principais objetivos da Lava Jato era afastar Lula da disputa eleitoral. Agora, que as eleições terminaram, Moro pode tirar a máscara e revelar seu partidarismo.  

No Brasil e no exterior a nomeação foi vista com estranheza pelos meios de comunicação. O Financial Times, do Reino Unido, estampou: "Bolsonaro nomeia juiz que ajudou a prender Lula". O editorial do Estadão, disse que ao escolher Moro para ministro, Bolsonaro foi coerente com seu discurso, mas lembrou que "o juiz Sergio Moro sempre se apresentou, ao longo de sua trajetória na Lava Jato, como um magistrado orgulhoso de seu distanciamento do mundo político. Em 2016, Moro chegou a dizer, em entrevista ao Estado, que não tinha a menor intenção de entrar para a política". E afirmou ter faltado sabedoria à decisão, uma vez que a Lava Jato, "que já tinha assumido traços nitidamente políticos em razão da ação militante de alguns de seus procuradores", acabou por extrapolar dos seus limites e objetivos ao criminalizar a política, o que "abriu caminho para a ascensão de Jair Bolsonaro".  

A influência de Sergio Moro nas eleições de 2018 é de uma clareza solar. Conforme escreveu Bruno Boghossian (Folha de São Paulo), "embora não fosse um jogador inscrito no torneio, o futuro ministro da Justiça reconfigurou o tabuleiro da eleição". Sim, pois coordenou as delações premiadas, autorizou interceptações telefônicas, julgou as ações penais que culminaram na condenação de políticos e mandou prender o candidato que liderava as pesquisas. Para o ex-ministro do STF, Carlos Ayres Britto, a decisão do juiz Moro, de "pedir exoneração e já se transportar, com mala e bagagens para um cargo do Poder Executivo", compromete a "boa imagem social do próprio Judiciário", pois a movimentação não combina com o princípio da separação dos poderes (CF, art. 2º). Além da excepcionalidade da migração, a transformação de Moro de juiz titular da  13ª Vara Federal de Curitiba a futuro ministro ocorreu numa velocidade muito rápida. Moro renuncia à carreira de magistrado para ser um subordinado de Bolsonaro. Como um Juiz Federal pode ser ministro de um presidente que é contra a liberdade de imprensa, elogia torturador e despreza os direitos humanos?

Segundo Bruno Boghossian, "Moro tenta pegar um atalho para evitar a repetição do que ocorreu com a Operação Mãos Limpas. Estudiosos do caso italiano dizem que a corrupção sobreviveu porque políticos eleitos na esteira das investigações minaram os mecanismos de combate ao crime. No centro do poder, o juiz quer blindar a Lava Jato". Sim, parece ser esse o objetivo do agora ex-juiz Sergio Moro, não permitir que "sua obra" (mais de 100 condenações de empresários, lobistas, doleiros, políticos e executivos da Petrobrás) seja destruída.  
  
A hipótese tem fundamento. Mas a suspeição irá pairar e reverberar nos livros de história. Como diz o ditado, não basta à mulher de César ser honesta, ela precisa parecer honesta. Sergio Moro já havia dado sinais de partidarismo político quando, em um evento patrocinado em 2016, foi flagrado em cochichos com Aécio Neves, então investigado no Supremo Tribunal Federal. E ele já havia dado sinais de sua imensa vaidade quando aceitou posar (de smoking) de salvador da Pátria e aceitar prêmios por um trabalho para o qual era muito bem pago pelo Estado. Ele era um servidor público. Nos últimos tempos, de tantos convescotes e eventos sociais aos quais era convidado, parece que a fama já havia engolido o juiz. Esperamos que a vaidade não engula o futuro ministro e ele possa exercer um ótimo trabalho, de modo a dissipar essa névoa espessa de suspeita que paira sobre a sua cabeça.