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terça-feira, 19 de julho de 2022

Rota 66

Rota 66/Caco Barcellos; 33 ed.; São Paulo: Globo, 1999, é um livro reportagem que aborda a violência policial na cidade de São Paulo de 1970 a 1985, fruto de um rigoroso processo de investigação jornalística. O livro é composto de três partes: 1) O caso Rota 66; 2) Os matadores; 3) Os inocentes. Caco Barcellos se define mais como repórter do que como jornalista porque gosta de investigar, perguntar, conversar com as pessoas, em suma, ir para a rua atrás da notícia. Depois, ele faz um trabalho de confrontar versões em busca da verdade factual. Também é um bom escritor, na medida em que costura com elegância seus achados e descobertas. O autor, além de revelar o peculiar método de investigação jornalística, que incluía a leitura diária do jornal Notícias Populares, bem como visitas diárias ao IML, descreve os fatos com todas as circunstâncias dos crimes, inclusive os nomes dos matadores e das vítimas. Rota 66 foi publicado em 1992 e ganhou o prêmio Jabuti em 1993, na categoria Reportagem; deveria ser leitura obrigatória para estudantes de Direito e Jornalismo.

O livro começa como um "trilher" de filme de ação; descreve uma fuga alucinante de carro pelas ruas de São Paulo, no ano de 1975, a perseguição policial e a execução de 3 jovens na Rua Argentina, Jardim Europa, por PMs da ROTA - Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, o 1º Batalhão de policiamento de Choque da Capital. O carro perseguido era ocupado por três jovens de classe média alta, frequentadores do Clube Paulistano, que resolveram aprontar uma traquinagem e furtar um toca-fitas de um amigo deles, que estava devendo no jogo. Na hora que estavam debruçados sobre o toca-fitas, chegou a veraneio da Rota. "- É a polícia! Mãos na cabeça!" Eles saíram correndo, entraram no fusca e Noronha começou a dirigir feito louco pelas ruas de São Paulo. Talvez o erro deles tenha sido fugir; mas a questão é que, depois da perseguição, eles foram brutalmente assassinados com tiros nas costas e na cabeça, sem nenhuma chance de se explicarem. Foram mais três vítimas da "Rota, a polícia que mata", a polícia que primeiro atira e depois pergunta. Todavia, foram três vítimas de classe média alta, cuja abordagem fugiu ao padrão e atraiu o interesse de toda a imprensa (especialmente de um jovem repórter chamado Caco Barcellos). O pai de uma das vítimas era amigo do governador Paulo Egídio Martins. Um promotor de justiça foi especialmente designado para o caso.

O mérito de Caco Barcellos foi ter desmascarado o método de alguns maus policiais da Rota: 1) vontade de matar; 2) predisposição a matar jovens negros e pardos da periferia; 3) o mau policial primeiro atira e depois pergunta; 4) mudança da cena do crime para não levantar suspeita de execução (ao contrário do que determina o Código de Processo Penal, que recomenda aos policiais a preservação da cena do crime); 5) falsificação ideológica do Boletim de Ocorrência, no qual o policial sempre alega que foi recebido a tiros e agiu em legítima defesa. A mudança da cena do crime envolve várias técnicas ilegais, que vão desde retirar o corpo do suposto ladrão ou criminoso do local onde caiu morto e levá-lo para o hospital já sem vida, até "plantar" uma arma na cena do crime para simular um tiroteio, como se fosse do civil morto.

O Brasil é um país extremamente violento. Sempre foi, desde as capitanias hereditárias, passando pela escravidão, pelo coronelismo, pela Guerra do Paraguai, por Canudos, até hoje. Em muitos lugares as coisas são resolvidas à bala, na base da força, no autoritarismo. Em uma Feira Literária em Paraty, Caco Barcellos chegou a comentar: “Nenhuma guerra recente ocorrida no mundo vitimou mais pessoas que os assassinatos acontecidos anualmente no Brasil”, disse ele, lembrando a cifra de 50 mil mortes por ano. “É a pior guerra do mundo.” Uma parte dessas mortes pode ser colocado na conta dos policiais militares, que são mal remunerados, mal treinados e vivem em um corporativismo que incentiva a matar, e não a prender o suspeito e levá-lo para a delegacia, como manda a lei. No fundo, o livro funciona como uma denúncia de uma corporação policial violenta que não respeita a lei. E é uma aula de jornalismo investigativo.

terça-feira, 12 de julho de 2022

São Paulo: procura-se uma saída

A cidade de São Paulo tornou-se inviável. É um fato. Tanto assim que, com a pandemia e a implantação do trabalho remoto para uma pequena e felizarda parcela da população, muitas pessoas resolveram migrar para cidades vizinhas, como Santos, Jundiaí, Sorocaba, Piracicaba etc. A pandemia ensinou algumas coisas e muitas pessoas saíram de SP em busca de uma melhor qualidade de vida, de verde, ar puro, silêncio ou, simplesmente, mais tempo com a família.

Da verticalização nem se fala. A cidade cresce para para os lados, mas sobretudo para cima. Foi realmente incrível a quantidade de novos edifícios levantados na cidade nos últimos dois anos. A construção civil foi um dos únicos ramos que cresceu na pandemia. Cada vez mais se vê menos vilas e mais prédios. Na Vila Mariana, em particular, o cenário é triste. A mudança na paisagem está acontecendo a olhos vistos. Grandes construtoras compraram e derrubaram muitas casinhas, predinhos, sobrados... Vem a demolição, colocam tudo abaixo. Constroem prédios altos, de todos os tipos e alguns muito perto da calçada. Caminhões, terra, caçambas, obras, barulho, cimento. A cidade vira um inferno. A verticalização prossegue. Para onde?

Não existe amor em SP já cantou Criolo, "onde os grafites gritam" nos muros, nas pontes e viadutos. É uma cidade de contrastes, que assusta quem a cruza em linha reta, da Faria Lima ao Capão Redondo. Precisa ter estômago... E pulmão de aço. As almas sensíveis sucumbem à degradação da paisagem. A falta de horizontes e de verde acabam por levar à depressão. Nas periferias, a falta de parques, de verde e de equipamentos públicos deixam os jovens sem perspectivas de mudança. Já nos bairros ricos e endinheirados, vê-se surgir na paisagem verdadeiros enclaves fortificados, uma cidade de muros altos e concreto segregador. Leiam Raquel Rolnik, Teresa Pires Caldeira.

Outra marca registrada são os rios poluídos. É de dar dó. E de tampar o nariz... O rio Tietê e o rio Pinheiros são esgotos a céu aberto, principalmente nos trechos em que o rio é considerado "morto", já que não consegue abrigar vida porque há pouco ou nenhum oxigênio dissolvido na água. Se é que se pode chamar aquilo de água. O despejo de esgoto sem tratamento já levou o antropólogo Darcy Ribeiro a dizer, com justeza, que os paulistanos não sabem tratar seus rios.

Há quem goste de morar na cidade. Sem dúvida, é um lugar de oportunidades para trabalhar (comércio, startaps, escritórios, residências, prédios etc.) e estudar (escolas, universidades, faculdades, institutos etc.). Há oportunidade de trabalho em quase todos os ramos, da construção ao comércio, de serviços domésticos a tecnologia de informação. Há cursos de todos os tipos na cidade. Se você quiser aprender grego, hebraico ou mandarim, certamente irá encontrar um curso que atenderá suas necessidades. Mas o preço para se morar em São Paulo é caro. O preço das faculdades, dos transportes e dos aluguéis é caríssimo. Mas não é só. A poluição da cidade também faz o seu estrago. Os níveis atuais de poluição em São Paulo reduzem a expectativa de vida em cerca de um a três anos, gerando problemas como o câncer de pulmão e de vias aéreas superiores, como asma, rinite, bronquite e sinusite. Graças a Deus existe o parque do Ibirapuera para arejar a mente, andar, correr, andar de bicicleta, patins, skate etc. Mas quantos tem a sorte de morar ali por perto?

A São Paulo de hoje não é mais a cidade feia e bela de antigamente, a São Paulo dos novos baianos, dos anos 60, da época dos saudosos festivais da Record, quando os artistas moravam no centro, na Avenida São Luiz e Consolação e alguma coisa acontecia quando cruzavam a Ipiranga com a avenida São João. Naquela época ainda era uma cidade de encontros possíveis em espaços públicos, nas ruas, nos bares, nos restaurantes, nas faculdades, nos teatros. Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, Rita Lee, Chico Buarque se encontravam nas praças. Igualmente, a São Paulo de hoje não é mais a cidade do início dos anos 90, na administração Luiza Erundina, quando tinha um planejamento da cidade para todas as classes sociais em projeto cultural inclusive, com shows no MASP e no Anhangabaú. A cidade hoje é mais dura, feia, veloz e violenta. E, fora de alguns poucos circuitos, tornou-se uma cidade interditada para o afeto coletivo. "O avesso do avesso do avesso".