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domingo, 24 de outubro de 2021

MAID

A câmera foca Alex Russel. A protagonista está acordada, assustada e deitada na mesma cama do marido, Sean, mas ele dorme. Ela esperou ele dormir e o momento certo para levantar da cama, pé ante pé, sem fazer barulho, vestir uma roupa, calçar um tênis, sair do quarto, pegar a filha no outro quarto e zarpar. Sair de uma casa que já mostra na parede as marcas da violência doméstica. O primeiro episódio mostra Alex fugindo de um casamento abusivo e de uma marido violento, com sua filha de 3 anos no colo. Assim começa Maid, série produzida pela Netflix e Warner Bros. É um drama. E dos bons. 

No dia seguinte à fuga da violência doméstica, Alex (Margareth Qualley) vai numa agência da Previdência social (Social Security), mas como não quer denunciar o marido por agressão ou abuso, não tem emprego e declara não ter habilidades específicas, a atendente a encaminha para a empresa "Value Maids", serviço de limpeza de casas feito por diaristas. Assim também começa o drama de refazer a vida a partir do zero, a partir do nada, com uma criança de colo. É duro. O espectador sofre junto e torce por uma volta por cima. Mas a estrada é longa... 

Aos poucos a série mostra que Alex não tem com quem contar. Está praticamente sozinha no mundo, por assim dizer. Paula (Andie McDowell), sua mãe, é uma artista hippie, bipolar e atraída por homens autoritários e problemáticos. Um foco de confusões. Seu pai também é alcoólatra e está tentando se reerguer na vida com a ajuda do AAA, mas Alex não tem confiança nele porque ele era violento com sua mãe antes do divórcio. Assim, de um dia para o outro Alex se vê na rua, sem teto, sem dinheiro e sem pai nem mãe confiáveis. Também não dá para Alex desabafar com ninguém. Os americanos são meio travados para falar de sentimentos.

Como Alex não prestou queixa logo em seguida à fuga de casa e não sofreu violência física, ela fica numa espécie de limbo jurídico. Para piorar a situação, Sean (Nick Robinson), o ex-marido, entra na justiça pedindo a guarda da filha. Os problemas vão se avolumando nos ombros da jovem mãe. Ela não sabe, nesse ponto, que violência psicológica também é violência. O filme tem o mérito de retratar o percurso da protagonista, com suas quedas e reerguimentos. Há um abrigo (shelter) no meio do caminho. Um abrigo para mulheres vítimas de violência doméstica. Uma chance de recuperação. 

A série vale a pena. O espectador fica grudado na tela na torcida pela protagonista. A série mostra o lado proletário dos Estados Unidos, o duro trabalho da empregada doméstica, a rudeza da agência de emprego. A falta de proteção social que se dá em alguns pontos cegos no sistema. Mas, por outro lado, também mostra um abrigo exemplar para mulheres vítimas de abuso. No caso de Alex, além da missão de se sair da esfera de violência do marido e conquistar sua independência financeira para garantir a guarda da filha, ela também tem que se refazer como pessoa e como mulher. 

De fato, além do marido, Alex ainda tem um conflito com Paula, no qual ela precisa quebrar um círculo vicioso de dependência emocional e se libertar da mãe, que hora sim hora não, faz comentários maldosos, denegrindo filha. Há uma ambivalência aí, pois, por outro lado, foi Paula quem a protegeu do pai violento. Muitos filmes já falaram da mãe tóxica ou da mãe dominadora, que atrapalha, atrasa ou quebra a autoestima dos filhos. É duro a escolha de seguir a estrada com ou sem a mãe, mas Alex vai ter que escolher. Ou o destino vai dizer...

sábado, 2 de outubro de 2021

Justiça - Maria Augusta Ramos

"Justiça" é o título de um documentário (2004) de Maria Augusta Ramos (disponível na Netflix) retratando o sistema de Justiça penal no Brasil e cenas do cotidiano dos operadores do Direito. Os personagens são: uma juíza durona, que depois é promovida à Desembargadora; um réu que está sendo processado por um crime; outro juiz, que é professor de Direito Processual Penal e uma defensora pública, entre outros. É um retrato da realidade. Não tem glamour nenhum. É um choque de realidade, mas é muito instrutivo e revelador das engrenagens do sistema penal brasileiro. De quebra, também retrata o Rio de Janeiro com sua mazelas.

As cenas mais longas, retratos da realidade no fórum, nos convida a pensar. É um filme que convida à reflexão. Acompanha-se o julgamento de um réu. Carlos Eduardo foi denunciado e processado pela prática do crime de receptação (art. 180 do Código Penal). Acompanha-se o drama da família, a dor da mãe, que visita o filho na cadeia, chora e vai a um culto pedir forças. A luta da namorada que está grávida e enfrenta uma gravidez sem o companheiro, que está preso. A cena em que ela, grávida, sobe o morro é reveladora da dura luta da classe menos favorecida.

Maria Augusta Ramos apenas mostra a realidade, ela não aponta o dedo para acusar o sistema de justiça penal brasileiro. Não há panfletagem, acusações nem discursos veementes. Pelo contrário. O filme é calmo, quase silencioso. A câmera é uma testemunha das cenas da Justiça. A câmera entra nos recintos, nos fóruns, nos presídios, nas celas, nas casas dos juízes e defensores públicos. A diretora apenas mostra, expõe, revela como funciona o sistema penal. É um sistema que dá emprego e função para muita gente: promotores, juízes, defensores públicos, advogados, escriturários, e servidores da justiça, mas que não resolve o problema. É um girar a roda sem fim. Crime, julgamento e punição. Mas sem reeducação. A cada ano com novas e novas levas de condenados, de apenados, de reincidentes, sem que se eduque ou dê ocupação lícita ou novas oportunidades a essa gente. É claro que é necessário punir os criminosos e os malfeitores, mas é necessário dar a eles oportunidades de regeneração, de mudarem de vida.

Há uma cena chocante em que é mostrada a cela lotada em que fica o réu Carlos Eduardo, enquanto espera por seu julgamento. É uma carceragem para presos provisórios, isto é, aqueles que estão sendo processados criminalmente, mas ainda não foram condenados definitivamente, e tampouco conseguiram obter liberdade provisória por habeas corpus. Na carceragem referida não há espaço sequer para metade dos detentos ficarem deitados. Para caber todos os presos naquele exíguo espaço, todos os presos precisam ficar de pé para que alguns fiquem deitados em redes, no alto. Para quem trabalha com a Justiça Penal no Brasil, sabe-se que ela é um rolo compressor, onde os operadores do Direito atuam mecanicamente, dado o elevadíssimo número de processos, e que ela é seletiva, isto é, condena mais pobres do que ricos, mais negros do que brancos.

O filme só não mostrou o lado do Ministério Público e isso foi uma falha. O documentário revela o Ministério Público, o órgão acusatório no sistema brasileiro, como um trator, que vai oferecendo denúncia, sem discriminar muito e agindo pelos critérios da produtividade, pelo número de denúncias que um promotor consegue oferecer por mês. Isso até pode corresponder à realidade, mas o documentário não acompanhou o dia a dia de um promotor, como fez com um juiz e com a defensora pública.

De qualquer modo, trata-se de programa obrigatório para todos aqueles que desejam ver como funciona o Direito Penal na prática, na vida real, e não em teoria ou nos livros de doutrina. E revela o quanto ainda precisamos evoluir como sociedade.