Lá se
vão 30 anos da Constituinte, momento marcante da redemocratização.
O livro 1988: segredos da Constituinte. Os vinte meses que
agitaram e mudaram o Brasil, Luiz Maklouf Carvalho, Rio de Janeiro:
Record, 2017, 503 páginas, propõe-se a contar um pouco dos
trabalhos que resultaram na promulgação da nossa atual Constituição
da República. Várias dúvidas assaltavam os deputados e senadores constituintes, no total de 559. Assembleia Constituinte exclusiva ou Congresso
Constituinte que continuasse a funcionar? Presidencialismo ou
parlamentarismo? Mandato de 4 ou 5 anos para o Sarney? Viés
socialista ou liberal? Reforma agrária ou não? Qual o tamanho que o
Estado deve ter? Essas e outras questões foram temas de debates
acalorados e votações no período de 1º/02/1987 até 5/10/1988. Maklouf Carvalho
propôs-se a contar essa história pela voz de seus participantes
diretos. São 44 entrevistas, a maioria com constituintes, como
Bernardo Cabral, Fernando Henrique Cardoso, José Fogaça, Antônio
Britto, José Lourenço, Nelson Jobim, Benito Gama e Ibsen Pinheiro.
Para encarar a empreitada e refrescar a memória dos entrevistados,
o autor estudou a bibliografia a respeito, os anais da Constituinte e
o que saiu na imprensa escrita no período.
Logo que
assumiu a presidência, em 1985, Sarney tinha seis anos de mandato e
resolveu abrir mão de um, propondo cinco, em um pronunciamento na
televisão. No livro, ele explica o porquê dessa decisão. Os
constituintes brincam que foi a pior propaganda que alguém já fez,
pois a população entendeu que ele quis estender um ano a
mais. Para complicar, Mário Covas e Ulysses Guimarães, dois
caciques que mediam forças, estavam de olho na próxima
disputa presidencial e houve a proposta do mandato de quatro anos.
Armou-se a confusão. Os depoimentos revelam que esse debate da
duração do mandato prejudicou muito os trabalhos. O presidente
Sarney teve uma boa postura e não se meteu na Constituinte, com
exceção dessa questão, quando usou toda sua força política e a
máquina, via concessões de rádio e televisão, para fazer
prevalecer os cinco anos. O Saulo Ramos era sua voz e o ACM era o que
negociava e concedia os favores. Por outro lado, também é relatado
que o Brasil quase adotou o parlamentarismo como sistema de governo, uma vez que vários lideres concordavam. Somente não o fez pela negativa do Mário Covas, líder do PMDB
na Constituinte. Isso revela não só um personalismo absurdo, como também explica a esquisitice atual das medidas
provisórias, sistema mais afeito ao parlamentarismo.
A
Constituinte não teve ponto de partida, começou do zero. Era um
livro em branco. Tudo era possível. Para muitos, isso foi um
complicador, porque atrasou os trabalhos. Para outros não tinha
jeito, porque tínhamos acabado de sair de um regime autoritário.
Bem por isso, não se aceitou o modelo da Constituição de 1946, nem
o projeto feito pela Comissão dos Notáveis. Uma vez iniciada, a
Constituinte foi composta por oito comissões, cada qual com três
subcomissões. E mais a Comissão de Sistematização, cuja relatoria
coube ao Bernardo Cabral, que
costurou tudo. Dono de uma índole paciente e conciliadora, ele
ouvia todos os lados e fazia de conta que concordava com todo mundo. Nelson Jobim assim resumiu: "O Bernardo tem uma característica. Tu fala com ele e sai convencido de que ele vai fazer tudo que tu pedir". Para alguns isso foi bom, pois como disse Fernando Henrique, "a
Constituição é um pacto. E ele é uma pessoa que pactuava. Uma vez o Felipe González [primeiro ministro da Espanha entre 1982 e 1996] disse uma coisa que é verdade: toda boa Constituição tem que ser ambígua, como a Bíblia. Porque tem que dar margem a interpretações diversas".
É
revelado que, no início, a Constituinte teve uma diretriz mais à
esquerda, principalmente porque coube ao Covas nomear os Relatores
das comissões e subcomissões. Nessa primeira fase houve uma
ampla participação da sociedade, em que vários setores foram
ouvidos, inclusive por meio das
emendas populares. Há relatos de que foi uma festa cívica!
Todavia, no final de 1987, inicia-se uma segunda fase, em que o
Centrão, composto por forças conservadoras, organizou-se, conseguiu
mudar o regimento e passou a
contrapor-se às ideias mais progressistas, como a reforma agrária.
Havia um medo de que a propriedade privada fosse extinta e de uma
eventual "sovietização" do país. Alguns depoimentos
lembram o contexto histórico em que foi elaborada a Constituição,
no final da guerra fria, antes da queda do muro de Berlim. E nem a
esquerda nem a direita tinham força suficiente para impor sua
vontade. Logo, era preciso convergir para um acordo, uma composição.
Esse jogo de forças explica os motivos pelos quais há elementos
tantos de um Estado Socialista quanto
de um Estado Liberal na Constituição.
O que
emerge de mais relevante é que, com todos os seus defeitos, temos
uma boa Constituição, que organizou um Estado Democrático, um
regime republicano e com sólidas instituições. Trata-se de uma
Constituição avançada e progressista em termos de direitos
individuais e sociais, inclusive um sistema de saúde universal e o
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Por outro lado,
a Constituição destinou-se a assegurar fatias de mercado e condições de poder a
corporações públicas e privadas e a entidades estatais e paraestatais. Os setores mais
organizados do Estado e da sociedade trataram de garantir sua parte,
seu quinhão. Houve lobbies fortíssimos, de vários setores, como a
Rede Globo, Colégio Objetivo, Ministério Público, Magistratura,
Petrobrás, Eletrobrás, Comgás, Polícia Civil, Polícia Militar,
proprietários de terras etc. O jurista Carlos Ary Sundfeld, conta
ter descoberto que um dos segmentos mais organizados da sociedade
eram associações profissionais. O
jurista Joaquim Falcão confirma que houve lobbies muito fortes e
emenda: "[a] história confirmou que o mal do país é o
corporativismo, público e privado".
Não é
um livro de direito, mas ajuda a entender como a Constituição foi
elaborada, inclusive com técnicas de redação para contornar os
chamados "buracos negros", isto é, quando havia um
impasse. A saída era colocar "na forma da lei" e postergar
a solução para o futuro. Também não é uma obra de política, mas
deixa claro como ela é feita, com o "toma lá dá cá", a
troca de favores etc. O leitor percebe que a política se faz nos
bastidores, nos almoços, nas conversas nas casas dos políticos, nos
conchavos... Há namoros, cortejos, vaidades e também há vinganças,
ressentimentos e retaliações dignas de uma obra shakespeariana. Há partes bem engraçadas, principalmente pelo tom informal. O
livro não é completo porque muitos constituintes importantes já morreram, casos de Ulysses Guimarães, Mário Covas,
José Richa, Roberto Cardoso Alves, Affonso Arinos, Jarbas
Passarinho, Severo Gomes e Antônio Carlos Magalhães. Faltaram
entrevistas importantes, como dos juristas José Afonso da Silva e
Fábio Konder Comparato, ainda vivos. De toda forma, é uma bela
contribuição para resgatar a memória do período e ajudar a
entender como foi elaborado o documento que organizou a República
Federativa do Brasil e, por meio de seus representantes, colocou no
papel as aspirações do povo brasileiro.