Translate

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

1987/1988: segredos da Constituinte

Resultado de imagem para segredos da constituinte 
Lá se vão 30 anos da Constituinte, momento marcante da redemocratização. O livro 1988: segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil, Luiz Maklouf Carvalho, Rio de Janeiro: Record, 2017, 503 páginas, propõe-se a contar um pouco dos trabalhos que resultaram na promulgação da nossa atual Constituição da República. Várias dúvidas assaltavam os deputados e senadores constituintes, no total de 559. Assembleia Constituinte exclusiva ou Congresso Constituinte que continuasse a funcionar? Presidencialismo ou parlamentarismo? Mandato de 4 ou 5 anos para o Sarney? Viés socialista ou liberal? Reforma agrária ou não? Qual o tamanho que o Estado deve ter? Essas e outras questões foram temas de debates acalorados e votações no período de 1º/02/1987 até 5/10/1988. Maklouf Carvalho propôs-se a contar essa história pela voz de seus participantes diretos. São 44 entrevistas, a maioria com constituintes, como Bernardo Cabral, Fernando Henrique Cardoso, José Fogaça, Antônio Britto, José Lourenço, Nelson Jobim, Benito Gama e Ibsen Pinheiro. Para encarar a empreitada e refrescar a memória dos entrevistados, o autor estudou a bibliografia a respeito, os anais da Constituinte e o que saiu na imprensa escrita no período.

Logo que assumiu a presidência, em 1985, Sarney tinha seis anos de mandato e resolveu abrir mão de um, propondo cinco, em um pronunciamento na televisão. No livro, ele explica o porquê dessa decisão. Os constituintes brincam que foi a pior propaganda que alguém já fez, pois a população entendeu que ele quis estender um ano a mais. Para complicar, Mário Covas e Ulysses Guimarães, dois caciques que mediam forças, estavam de olho na próxima disputa presidencial e houve a proposta do mandato de quatro anos. Armou-se a confusão. Os depoimentos revelam que esse debate da duração do mandato prejudicou muito os trabalhos. O presidente Sarney teve uma boa postura e não se meteu na Constituinte, com exceção dessa questão, quando usou toda sua força política e a máquina, via concessões de rádio e televisão, para fazer prevalecer os cinco anos. O Saulo Ramos era sua voz e o ACM era o que negociava e concedia os favores. Por outro lado, também é relatado que o Brasil quase adotou o parlamentarismo como sistema de governo, uma vez que vários lideres concordavam. Somente não o fez pela negativa do Mário Covas, líder do PMDB na Constituinte. Isso revela não só um personalismo absurdo, como também explica a esquisitice atual das medidas provisórias, sistema mais afeito ao parlamentarismo.

A Constituinte não teve ponto de partida, começou do zero. Era um livro em branco. Tudo era possível. Para muitos, isso foi um complicador, porque atrasou os trabalhos. Para outros não tinha jeito, porque tínhamos acabado de sair de um regime autoritário. Bem por isso, não se aceitou o modelo da Constituição de 1946, nem o projeto feito pela Comissão dos Notáveis. Uma vez iniciada, a Constituinte foi composta por oito comissões, cada qual com três subcomissões. E mais a Comissão de Sistematização, cuja relatoria coube ao Bernardo Cabral, que costurou tudo. Dono de uma índole paciente e conciliadora, ele ouvia todos os lados e fazia de conta que concordava com todo mundo. Nelson Jobim assim resumiu: "O Bernardo tem uma característica. Tu fala com ele e sai convencido de que ele vai fazer tudo que tu pedir". Para alguns isso foi bom, pois como disse Fernando Henrique, "a Constituição é um pacto. E ele é uma pessoa que pactuava. Uma vez o Felipe González [primeiro ministro da Espanha entre 1982 e 1996] disse uma coisa que é verdade: toda boa Constituição tem que ser ambígua, como a Bíblia. Porque tem que dar margem a interpretações diversas". 

É revelado que, no início, a Constituinte teve uma diretriz mais à esquerda, principalmente porque coube ao Covas nomear os Relatores das comissões e subcomissões. Nessa primeira fase houve uma ampla participação da sociedade, em que vários setores foram ouvidos, inclusive por meio das emendas populares. Há relatos de que foi uma festa cívica! Todavia, no final de 1987, inicia-se uma segunda fase, em que o Centrão, composto por forças conservadoras, organizou-se, conseguiu mudar o regimento e passou a contrapor-se às ideias mais progressistas, como a reforma agrária. Havia um medo de que a propriedade privada fosse extinta e de uma eventual "sovietização" do país. Alguns depoimentos lembram o contexto histórico em que foi elaborada a Constituição, no final da guerra fria, antes da queda do muro de Berlim. E nem a esquerda nem a direita tinham força suficiente para impor sua vontade. Logo, era preciso convergir para um acordo, uma composição. Esse jogo de forças explica os motivos pelos quais há elementos tantos de um Estado Socialista quanto de um Estado Liberal na Constituição. 

O que emerge de mais relevante é que, com todos os seus defeitos, temos uma boa Constituição, que organizou um Estado Democrático, um regime republicano e com sólidas instituições. Trata-se de uma Constituição avançada e progressista em termos de direitos individuais e sociais, inclusive um sistema de saúde universal e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Por outro lado, a Constituição destinou-se a assegurar fatias de mercado e condições de poder a corporações públicas e privadas e a entidades estatais e paraestatais. Os setores mais organizados do Estado e da sociedade trataram de garantir sua parte, seu quinhão. Houve lobbies fortíssimos, de vários setores, como a Rede Globo, Colégio Objetivo, Ministério Público, Magistratura, Petrobrás, Eletrobrás, Comgás, Polícia Civil, Polícia Militar, proprietários de terras etc. O jurista Carlos Ary Sundfeld, conta ter descoberto que um dos segmentos mais organizados da sociedade eram associações profissionais. O jurista Joaquim Falcão confirma que houve lobbies muito fortes e emenda: "[a] história confirmou que o mal do país é o corporativismo, público e privado".
 
Não é um livro de direito, mas ajuda a entender como a Constituição foi elaborada, inclusive com técnicas de redação para contornar os chamados "buracos negros", isto é, quando havia um impasse. A saída era colocar "na forma da lei" e postergar a solução para o futuro. Também não é uma obra de política, mas deixa claro como ela é feita, com o "toma lá dá cá", a troca de favores etc. O leitor percebe que a política se faz nos bastidores, nos almoços, nas conversas nas casas dos políticos, nos conchavos... Há namoros, cortejos, vaidades e também há vinganças, ressentimentos e retaliações dignas de uma obra shakespeariana. Há partes bem engraçadas, principalmente pelo tom informal. O livro não é completo porque muitos constituintes importantes já morreram, casos de Ulysses Guimarães, Mário Covas, José Richa, Roberto Cardoso Alves, Affonso Arinos, Jarbas Passarinho, Severo Gomes e Antônio Carlos Magalhães. Faltaram entrevistas importantes, como dos juristas José Afonso da Silva e Fábio Konder Comparato, ainda vivos. De toda forma, é uma bela contribuição para resgatar a memória do período e ajudar a entender como foi elaborado o documento que organizou a República Federativa do Brasil e, por meio de seus representantes, colocou no papel as aspirações do povo brasileiro.