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segunda-feira, 12 de setembro de 2022

O exercício da medicina

Drauzio Varella é um craque das letras. Escreve com uma facilidade invejável. O exercício da incerteza: Memórias, 1ª edição - São Paulo: Companhia das Letras, 2022 é o seu livro mais recente e o texto flui de sua pena ao sabor das memórias que evoca em mais de 50 anos de profissão e 79 de vida. Parece até que ele está a conversar com o leitor na varanda de casa depois de um cafezinho. Lembra uma figura que foi extinta: o antigo médico da família. Aquele médico bondoso e confiável que conhecia pai, mãe e filhos pelo nome, além do histórico médico de cada um. Chegava na casa do paciente carregando uma maleta, abria-a para pegar o estetoscópio, auscultava os pulmões, tirava o termômetro para medir a febre, pedia para abrir a boca, punha o palito na língua e pedia para o paciente dizer AAA...

A primeira vez que vi o Doutor Drauzio foi no Fantástico, dando conselhos sobre saúde e explicando as formas de se evitar ou se tratar certas doenças. Serviço de utilidade pública em horário nobre. Coisa difícil de se ver. Nesse sentido, Drauzio foi um servidor da saúde nesses 50 anos de profissão, que agora ele conta em detalhes. Não somente um médico mas um comunicador incrível, didático e objetivo, no rádio, na TV e agora até em canal do You Tube. Ele conta que essa facilidade de comunicação não veio de graça, mas a custo de muita prática; na verdade, de anos de trabalho como professor do Colégio Objetivo, que ajudou a fundar com João Carlos Di Genio. Estudioso incansável, Drauzio nunca parou de estudar. Ele conta que depois de certo tempo, com medo de não acompanhar os avanços da profissão, começou a assinar e ler duas revistas científicas: Science e Nature.

O texto flui ao sabor das memórias desse paulistano, nascido no Brás, neto de imigrantes espanhóis que vieram para o Brasil no começo do século XX. Seu avô imigrou para o Brasil com 12 anos de idade, trabalhou em lavoura de café e depois migrou para São Paulo, onde iniciou um negócio com transporte de mercadorias. Drauzio conta que, desde criança, já sabia que queria estudar medicina e curar pessoas. Talvez a morte prematura de sua mãe o tenha ajudado, inconscientemente, a trilhar esse caminho. Bom estudante, entrou em medicina da USP em segundo lugar.

O menino doente que perdeu cedo sua mãe e foi estudar no colégio Arquidiocesano, sempre soube que queria ser médico, mas demorou a descobrir sua especialidade: a oncologia. Ele conta a evolução do tratamento oncológico com as descobertas da radioterapia e da quimioterapia. Pessoa inquieta e ávida por conhecimento, Drauzio conta que visitou a União Soviética em 1982 e viu uma medicina atrasada pelo menos 20 anos em relação ao Ocidente, com salas de espera lotadas e aparelhos médicos velhos e ultrapassados. Também visitou a Suécia e viu uma medicina evoluída com uma estrutura de primeira linha, que só não era perfeita por uma impessoalidade levado ao extremo: "o atendimento era prestado por médicos e residentes cuja escala de serviço variava de tal forma que um doente podia ser atendido toda vez por um médico diferente". E como não havia acompanhamento do caso pelo mesmo médico, um linfoma de baixa agressividade com remissão, podia ter recidiva por falta de atenção. Nada é perfeito. 

Observador arguto da sociedade, Drauzio conta de forma resumida sua experiência nas cadeias como médico voluntário e diz que não seria o mesmo homem hoje sem essa rica vivência (o leitor que quiser se aprofundar pode ler, do mesmo autor, Carandiru, Carcereiros e Prisioneiras). Ele confirma o que todos os carcereiros e juízes já sabem: "Em sua origem, construídas para prender escravos, as prisões brasileiras preservam sua vocação elitista. Nas que frequentei em São Paulo e nas que visitei pelo país não encontrei um único prisioneiro oriundo das camadas mais ricas da população".

Defensor do Sistema Único de Saúde (SUS), previsto na Constituição Federal de 1988 e implantado de forma gradual, Drauzio conta que, antes disso, vigorava o antigo INAMPS, sistema acessível apenas para quem trabalhava com carteira assinada (CTPS). Ou seja, quem trabalhava na informalidade ou estava desempregado ficava fora do sistema. Caso adoecesse, o camarada ficava na dependência da boa vontade dos Hospitais Universitários e das Santas Casas. Os trabalhadores do campo também estavam excluídos. Com a redemocratização do país, os constituintes previram um sistema de saúde gratuito e universal, isto é, para todos os brasileiros, que foi implantado de forma bem sucedida e gradual, principalmente a partir de 1993. 

O leitor será ainda agraciado com relatos e detalhes sobre: o surgimento dos planos de saúde no Brasil e seus inconvenientes; as doenças de ontem e de hoje; a depressão; os transtornos de ansiedade; a medicalização da vida cotidiana e muito mais nessa obra simples e rica em que o fio condutor é a prática da medicina, principalmente de 1950 para cá. Como lições ficam: prevenir é o melhor remédio. Uma alimentação saudável, com frutas, legumes e verduras, aliado à prática de atividade física frequente, podem evitar uma série incontável de doenças, além de prolongar a vida. Depois de sua contribuição inestimável ao país, só nos resta dizer a esse ilustre brasileiro: muito obrigado Doutor Drauzio!