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segunda-feira, 3 de maio de 2021

Na natureza selvagem

Christopher Johnson McCandless era um jovem norte-americano saudável, inteligente e que se saia bem em quase tudo o que fazia. Mas era inconformado com o sistema e incomodado com duas coisas em sua família: a obsessão dos pais em aparentar uma família perfeita para encobrir uma família problemática e o autoritarismo do pai, que o forçou a cursar faculdade contra a sua vontade. O jovem, que sempre tivera problemas com o pai, assentiu e cursou a bendita universidade de Emory por 4 anos. E tirou excelentes notas, além de ter trabalhado e economizado uma boa grana. Uma vez formado, porém, empreendeu uma longa viagem sem dar noticias do seu paradeiro. Desapareceu simplesmente, sem deixar rastros. Mergulhou na solidão da estrada em busca da natureza selvagem.

 "Tomar a trilha e não olhar para trás". Esse era o propósito de Chris McCandless quando deixou Atlanta para sempre e começou sua aventura pelos Estados Unidos da América. Leitor de Tolstoi, Jack London e Henry David Thoreau, o jovem tinha muitas críticas ao conforto da civilização e ao sistema capitalista, que incentiva o consumo em excesso, inclusive de coisas supérfluas. Desse modo, McCandless era um romântico, no sentido daquele que busca a natureza para entrar em contato com a pureza e a essência das coisas. Ele escreveu em seu diário, já no final de sua jornada, dentro do ônibus em que veio a morrer de inanição: "Dois anos ele caminha pela terra. Sem telefone, sem piscina, sem animal de estimação, sem cigarros. Liberdade definitiva. Um extremista. Um viajante estético cujo lar é a estrada. Fugido de Atlanta, não retornarás, porque "o Oeste é o melhor". E agora depois de dois anos errantes chega à última e maior aventura. A batalha final para matar o ser falso interior e concluir vitoriosamente a revolução espiritual".

McCandless, que em sua jornada autodenominava-se com outro nome, Alexander Supertramp, escreveu um diário e referia-se a si próprio na terceira pessoa, num tom pomposo. Pelos relatos, nota-se também significativas variações de humor, indo da euforia à melancolia, o que sugere algum tipo de transtorno psiquiátrico ou emocional. A personalidade e a aventura de McCandless divide opiniões. Alguns o admiram pela sua coragem e desapego; outros acreditam que ele era um desajustado e foi burro na sua empreitada, além de egoísta com os pais. Bom... acredito que ambos os lados tem sua razão. Tem muita gente maluca que se aventurou no Alasca e morreu. No caso de McCandless, tratava-se de um jovem com uma tremenda necessidade de afirmar, de modo inflexível, a sua autonomia, de fugir da neurose de seus pais, desligando-se temporariamente da família e dos valores conhecidos da civilização.

Como é sabido, o livro Na natureza selvagem, Jon Krakauer; tradução Pedro Maia Soares, Companhia das Letras, virou um belo filme em 2007, dirigido por Sean Penn. Em uma época de revolta contra a sociedade e o sistema, lembro-me de ter assistido ao filme e o impacto que teve sobre meus pensamentos. Foi inevitável a identificação com o personagem e os seus sentimentos, embora não totalmente, por ele levar tudo ao extremo, às últimas consequências. No filme, fiquei chocado com a cena em que, logo após abandonar seu carro, McCandless queima o resto do dinheiro que levava consigo. Ali se dá um corte, em que ele dá adeus à civilização. É o tipo da cena que, pelo absurdo, leva o espectador a arregalar os olhos ou gargalhar, tomado pelo espanto. O filme é lindamente dirigido e editado. Mas é perturbador.

Eu sabia da existência do livro mas, de forma consciente, esperei alguns anos para ter maturidade suficiente  para lê-lo. Alguns livros são assim: requerem um amadurecimento do leitor para serem desfrutados. É um livro triste. Chorei duas vezes durante a leitura e fiquei embargado outra. Um rapaz inteligente, saudável, cheio de vida, mas que brigou com os pais de forma irremediável, deu adeus para eles em seu íntimo (sem se despedir), se embrenhou na natureza selvagem e morreu. Hoje, embora compreenda a revolta e a atitude do rapaz, próprias da juventude, consigo enxergar melhor a dor e a angústia que ele causou a seus pais. Se antes eu me identificava com ele, por causa de revolta com pai e mãe, com o establishment e a hipocrisia da sociedade, hoje em dia não tanto, e fico triste por ele não ter tido tempo para sentar, conversar e perdoar pai e mãe, ventilar os assuntos, fazer terapia e superar as mágoas e os ressentimentos. Afinal, ele era um bom rapaz, de bom coração.  No final de sua vida e epopeia, dentro do ônibus e antes de morrer de inanição, sozinho, longe de tudo e de todos, McCandless finalmente compreendeu uma lição: "A felicidade só é real quando compartilhada".

McCandless foi criado em Annandale, nos arredores de Washington - Virgínia. Quando ele era criança, seus pais compraram um trailer Airstream e fizeram andanças pela Virginia, Carolina do Norte e Colorado.  Há uns dois capítulos em que o autor disseca a personalidade de McCandless, que julgava a si próprio e aos outros com rígidos padrões morais. Um jovem aventureiro, cheio de vida e disposto a correr riscos despertou sentimentos variados nas pessoas. McCandless despertava um instinto paternal nas figuras masculinas com quem se encontrava, entre eles Jim Gallien, Wayne Westerberg e principalmente Ronald Franz. Cada um a seu modo, tais figuras viam em McCandless seu filho, um jovem romântico e bom papo que buscava a liberdade, mas que precisava ser acolhido, amado e compreendido.