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quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

A vida de São Francisco de Assis

A vida de São Francisco foi uma coisa extraordinária; uma luz num planeta escuro em uma época tenebrosa. Era a época das cruzadas. Francisco nasceu em 1182; era filho de Pedro Bernardone, um rico comerciante de Assis e de dona Pica, sua esposa. Nascido em berço de ouro, tinha tudo para seguir os passos do pai e ser um rico comerciante. Mas Deus o havia destinado a outro propósito. Francisco foi o arauto do Evangelho na Alta Idade Média. Quando jovem, Francisco era o rei das festas e cantorias de Assis. Sua alegria contagiava seus amigos e convivas. Ele era muito sociável, brincalhão, festeiro, generoso. Sua generosidade se estendia também ao pobres. Francisco não podia ver um mendigo sem se sentir culpado e ir atrás para dar um pão, uma comida, uma roupa ou um dinheiro; muitas vezes todo o dinheiro que carregava consigo. Francisco era tão alegre que, ao ajudar seu pai no estabelecimento comercial, iniciava conversas tão animadas e simpáticas, que cativava os fregueses e fazia-os comprar as mais caras mercadorias com um sorriso no rosto. Seu pai aprovava esse comportamento, mas não gostava muito dos arroubos de generosidade do seu filho. Todavia, contanto que Francisco continuasse trabalhando para ele, trazendo fregueses e vivendo a vida social tradicional de Assis, estava tudo bem. O problema é que a generosidade de Francisco para com os mendigos estava aumentando...

Até que um dia, Francisco teve uma doença grave e ficou de cama por várias semanas. Somente começou a se recuperar quando o sol entrava pela janela do seu quarto. Sentia o calor do Sol e isso revigorava suas forças. No dia seguinte, graças ao Sol, conseguiu ficar sentado na cama. No outro dia, conseguiu andar até a janela do quarto, de onde avistou a linda vista que tinha e até então não havia percebido em todos seus tons e cores. Viu os campos, os bosques, as estradas, os trabalhadores e ficou admirado. Depois, conseguiu sair de casa e andar um pouco pela rua, só não indo mais longe para não preocupar sua mãe. No dia seguinte, conseguiu andar até a porta da cidade. Adiante, transpôs o portal e foi andar pelos campos e montanhas nos arredores de Assis. Ali sentiu uma alegria indizível caminhando em meio à natureza, passeando pelos campos e pela montanhas. Jamais sentira uma prazer tão grande. Foi uma descoberta da felicidade diferente da que estava acostumado. 

Dentro de um curto prazo, Francisco recuperou a saúde e pôde retomar sua rotina anterior. Todavia, Francisco já não sentia mais tanto prazer nas festas e jantares, regados a vinho, com seus amigos. Ia com eles, bebia e cantava, mas aquelas festas não mais satisfazia a sua alma. Quando cantava as velhas canções, as melodias soavam vazias aos seus ouvidos. Ele preferia caminhar sozinho pelos campos e pelos bosques, vendo a natureza, sentia mais prazer nisso. Certo dia, Francisco preparou um banquete para seus amigos. Quando a festa e a cantoria chegaram no auge, todos saíram cantando animados pelas ruas. Francisco, porém, estava pensativo e taciturno, de modo que sentou em uma calçada e ficou a pensar e a olhar para o alto. Ninguém sentiu sua falta, a não ser um amigo, que voltou e o encontrou ali, sozinho. Tentou fazer pilhéria e perguntou: "Com o que está sonhando? Está pensando em casar?". Francisco olhou para ele por um instante em profundo silêncio e, para espanto do seu amigo e para seu próprio espanto, disse: "Tens razão. Tenciono casar-me, mas com uma mulher mais pura e mais amável do que jamais viste. Seu nome é dona Pobreza". A partir daí, Francisco vai se dedicar aos pobres e vai ter a dona Pobreza como companheira pelo resto da vida. Mas a ruptura total ainda não havia acontecido. 

Um dia, Francisco estava cavalgando pela estrada quando avistou um leproso. Naquele tempo, a lepra era uma coisa terrível, uma sentença de morte, todo mundo sabia disso e fugia dos leprosos como o diabo da cruz. Quando viu o leproso, Francisco meteu esporas no cavalo para fugir desse encontro. Mas algo dentro dele procurava esse encontro. Houve um conflito ali, no seu íntimo. "Entretanto, como se alguma outra mão houvesse tomado o controle da sua, continuou o caminho, diretamente na estrada por onde vinha o leproso". Agora já podia distinguir as terríveis deformidades do homem; podia ver seus lábios comidos e no lugar do nariz havia um buraco ulcerado. Ao chegar perto, Francisco saltou do cavalo e entregou ao leproso todo o dinheiro que tinha. A mão que pegou sua esmola era um tumor aberto. Francisco ficou com horror e medo, "mas... inclinou o rosto sobre a mão do leproso e beijo-a. Depois ergueu a vista. Não sentiu nem aversão nem medo". E uma sensação de felicidade sem tamanho inundou-o como jamais conhecera antes. Montou no cavalo e seguiu. Depois de alguns segundos, voltou  o rosto para trás para se despedir do leproso, mas a estrada estava deserta. O leproso tinha desaparecido. Esse acontecimento mudou para sempre a vida de Francisco. "De agora em diante nenhuma sensação de horror ou aversão separava-o da miséria da humanidade". 

A partir daí, Francisco começa a trabalhar como voluntário no lazareto, um leprosário longe da cidade, mas perto de Assis. Entrementes, continua a trabalhar para seu pai. Um dia, Francisco estava a rezar ajoelhado na igrejinha de São Damião, fora dos muros da cidade, profundamente absorvido na oração quando ouviu uma voz que saía do crucifixo: "Francisco, não vês que minha casa está em ruínas? Vai e restaura-a para mim". Francisco tomou a ordem ao pé da letra. Mas o dinheiro que tinha não era suficiente para restaurar a igrejinha de São Damião, que estava em ruínas. Então foi à loja do pai, subiu às prateleiras e retirou vários fardos de custosas fazendas para vender na feira. O padre da igreja ficou encantado, mas desconfiava que o rico comerciante aprovasse aquela ação. O filho ouvia vozes e o pai calculava o prejuízo. Na verdade, Pedro Bernardone ficou irado. A ação não autorizada do filho foi como um roubo; por isso, prendeu Francisco na adega de casa. Depois, como Francisco não dava sinais de arrependimento, mandou retirar toda a comida e deixar o filho só à pão e água. Dona Pica, como mãe amorosa, destrancou a porta e Francisco saiu. Quando Pedro Bernardone retornou, sua cólera transformou-se em fúria. Processou seu próprio filho. Resolveu levar seu filho às barras do tribunal para responder por seus atos. De fato, o pai prestou queixas contra o filho que foi julgado pelo tribunal eclesiástico. No dia marcado, Pedro Bernardone apresentou a acusação. Em seguida, foi a vez de Francisco. Falava de vozes que ouvira e de uma tarefa que o próprio Cristo lhe havia designado. O bispo colocou tudo na balança. Restituiu ao pai o dinheiro com a venda das fazendas, mas não viu culpa em Francisco. E disse: "Tu pretendes servir ao Senhor; mas sua causa não pode produzir frutos se os motivos não forem justos. O dinheiro que tiraste de teu pai não pode beneficiar a Igreja. Restitui-o ao seu legítimo dono". Francisco respondeu: "Senhor Bispo, não somente o dinheiro, mas tudo o que tenho dele, inclusive as roupas". Tirou fora seus trajes finos de linho e ficou só com uma camisa de fibra. Lançou suas roupas aos pés de seu pai, pôs o dinheiro em cima e gritou: "Escutai, vós. Até agora chamei Pedro Bernardone meu pai, mas agora desejo dizer 'padre nosso que estais no céu'". Ali Francisco exprimiu sua decisão de deixar seu pai celeste tomar o lugar de seu pai terrestre. 

Ao deixar a sala do tribunal, a não ser a camisa de fibra que vestia, Francisco nada mais possuía. Estava só e sem um tostão no bolso. E o povo de Assis prognosticava uma derrocada vergonhosa. Mas não foi isso o que aconteceu. Francisco confiara sua vida aos cuidados de Deus. Continuou a ajudar os leprosos do lazareto, a rezar fervorosamente, a fazer suas caminhadas diárias e à agradecer a Deus por tudo. Além disso, vestiu um surrado capote de camponês, com um capuz, abandonado na estrada, amarrou uma corda velha na cintura e começou a reconstruir a velha igreja. Como não tinha burro nem jumento, ele próprio carregava as pesadas pedras para a reconstrução da obra. Para comer, Francisco recorria à mendicância na cidade de Assis, mas muitos o hostilizavam, xingavam e o escorraçavam. Francisco dizia: "Obrigado pela humilhação". Outros, porém, mais tolerantes, lhe davam alguma coisa ou restos de comida. E assim ele ia vivendo. 

Francisco reconstruia a igreja, pedia comida e dormia ao relento. Quando o padre ofereceu dinheiro em troca da reconstrução da igreja, Francisco não aceitou. Quando Francisco ouviu a voz, ele já era um predestinado, mas sua mente ainda estava muito ligada às coisas mundanas, e ele tomou a ordem ao pé da letra e se pôs a reconstruir materialmente a igreja de São Damião. Em breve, Francisco compreenderá sua missão. Em 1209, depois de muito trabalho, Francisco termina o restauro da igreja. A inauguração não atraiu muita gente. Mas enquanto o padre estava celebrando a missa, Francisco finalmente entendeu que a voz lhe havia dito para reconstruir a Igreja de Cristo. Nessa missa, no dia de São Mateus, o padre leu do Evangelho segundo São Mateus, a palavra que Cristo dirigiu a seus apóstolos, quando os enviou ao mundo para proclamar o reino de Deus: "Eis que vos envio como ovelhas no meio de lobos". Então Francisco percebeu que a lição apostólica de pobreza, humildade e amor que o Senhor ordenara aos apóstolos, era exatamente aquilo que ele, Francisco, tinha sentido no seu coração e já vinha praticando há algum tempo. 

Um pouco depois, Francisco vai pregar o Evangelho em uma escadaria de Assis e todos os cidadãos o tomam como um mendigo louco. Zombaria e desprezo foram as reações que Francisco logrou depois de seu primeiro sermão. Mas Francisco não se abateu e continuou a fazer o que achava certo. O primeiro a compreender suas palavras foi Bernardo de Quintavalle, um rico comerciante que, depois do sermão, convidou Francisco para jantar na sua casa. Ficaram conversando a noite inteira e, já na manhã seguinte, o rico comerciante estava convertido. Logo depois, Francisco converteu outro seguidor, Pedro dei Cattani, que era, na verdade, o respeitado vigário da igreja de São Nicolau. A uma pergunta, Francisco respondeu: "O que os padres ensinam na igreja é a doutrina do Cristo, mas não o praticam em suas vidas. Prová-lo-ei com a Bíblia". E, como era de costume, abriram o Evangelho ao acaso, por três vezes. A primeira vez: "Se queres ser perfeito, vai vender tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro nos céus". A segunda, era a exortação de Jesus aos apóstolos quando saiam aos pares: "Não leveis nada convosco na vossa jornada, nem bolsa, nem pão, nem mesmo duas túnicas". A terceira vez: "Aquele que não toma a sua cruz e não me segue, não é digno de mim". Poucos dias depois, já com dois seguidores, o senhor Bernardo vendeu tudo o que tinha e os três foram distribuir a fortuna do colega aos pobres. E os três seguiam sempre juntos, ajudando os pobres, os doentes, os leprosos do lazareto, e continuavam a viver da caridade alheia. Em Assis, as opiniões se dividiram. Entre os ricos, os majores, os três eram doidos de pedra. Entre os pobres, os minores, os três eram esquisitos, mas boa gente, pois ajudavam os mais necessitados. De fato, para o povo simples que os ouvia, a doutrina de Cristo começou a tornar-se mais clara. Aqueles três esfarrapados eram diferentes dos padres da igreja, que também liam as palavras do Evangelho, mas viviam no conforto e na abundância e não abriam mão das vantagens pessoais e eclesiásticas. Também eram diferentes do monges dos claustros, que seguiam o mandamento da pobreza, mas suportavam-na como pesada carga, enquanto os três seguiam alegres a cantar pelas estradas de Assis. 

Uma história que se espalhou naquele tempo, conta que, um dia, após ter trabalhado de manhã até a noite no lazareto, achava-se Francisco sentado à beira da estrada lendo a Bíblia, único bem que os três possuíam, quando passou uma pobre mulher de regresso à casa. Estava aflita porque nada tinha que dar de comer aos seus filhos. Quando viu o homem à beira da estrada, na sua aflição, nem notou sua capa suja e esfarrapada. Dirigiu-se a ele e pediu-lhe uma moeda. Foi esta a primeira vez que Francisco lamentou não ter algum dinheiro. Nada possuía que não fosse a Bíblia. Era o seu tesouro. Servia para consolar e revigorar seu ânimo. Então Francisco disse: "Toma este livro. Vende-o e compra com o dinheiro pão para os teus filhos". Depois que a mulher se foi, Francisco se dirigiu a Deus explicando sua atitude e pedindo perdão. E então ouviu o Senhor que lhe respondia no íntimo: "Coloquei meu Evangelho vivo dentro do teu coração. Quem me ama e me segue vive a minha palavra". 

Depois disso, muitos outros seguidores se juntaram a Francisco e logo havia uma comunidade de franciscanos vivendo no telheiro de Rivo Torto. Foi por esse tempo que Francisco teve uma visão na caverna de Poggio Bustone, quando, depois de se arrepender pelo tempo desperdiçado na sua vida durante sua juventude, regada a bebedeiras e festas, retirou-se para uma sombria caverna. Era estreita e pequena, de modo que teve que se rastejar. Esfolado e coberto de sujeira, juntava as mãos e rezava, implorando a Deus que o perdoasse. Subitamente, suas mãos foram imersas em radiosa claridade. Ergueu a vista e viu a caverna cheia de luz. E uma voz disse: "Francisco, alegra-te, teus pecados estão perdoados. Escolhi-te para que possas proclamar o meu reino". E então viu centenas e milhares de irmãos caminharem para seu lado, como raios convergentes de todas as direções. 

Depois de um tempo vivendo em comunidade, Francisco sentiu uma urgência de formular o teor da vida evangélica em termos válidos para todos aqueles que optassem por seguir esse caminho do desapego aos bens materiais e do amor ao próximo. Pediu pergaminho, tinta e pena e traduziu em regras e preceitos a vida simples em comunidade que ele seus seguidores experimentavam. Com o papel em mãos, ele e seus companheiros partiram para Roma em busca de uma audiência com o papa Inocêncio III. Depois de ser ignorado por seu aspecto de mendigo, mas graças à intercessão do cardeal João de São Paulo, Francisco finalmente foi recebido pelo papa, um sábio teólogo. Depois de ouvir os preceitos do pobre mendigo, o papa disse que aquela forma de vida era muito austera, sendo difícil de ser seguida; ao que Francisco respondeu que confiava em Jesus Cristo que, tendo prometido a vida eterna e a felicidade celeste, certamente não negaria coisa tão mesquinha como o alimento para viverem. O papa ficou admirado e, depois de consultar os cardeais, falou a Francisco que, se ele queria seguir Jesus, o melhor seria ele e seus seguidores entrarem para uma das diversas ordens monásticas que havia na época, onde viviam os monges nos claustros, cada um em sua cela, em oração diária, sendo acolhidos e sustentados pela santa madre Igreja. No mosteiro, cada qual tinha sua cela, sua cama, refeições frugais mas regulares e somente esta independência econômica e esta segurança o emancipavam das garras do egotismo. Melhor assim do que ficarem soltos no mundo, como aventureiros, vagabundos ou tarefeiros, sujeitos às tentações mundanas. 

Ao que Francisco respondeu: "Caro papa Inocêncio, não temos medo do mundo e dos homens. Em qualquer parte onde estejamos, ou para onde formos, poderemos sempre ter nossa cela conosco. Pois o irmão Corpo é nossa cela, e nossa alma é eremita que fica lá dentro rezando a Deus. Se a alma não fica quieta dentro do corpo, pouco aproveita o piedoso uma cela feita pelo trabalho de suas mãos". Os cardeais ficaram irritados, mas o cardeal João de São Paulo interveio e o papa adiou o veredicto para o dia seguinte. Nessa noite o papa teve um sonho revelador e Francisco também, de modo que no dia seguinte, depois de Francisco contar uma parábola, o papa se curvou diante de Francisco e o abençoou, autorizando-o a pregar por toda parte.

(Resumo do livro Os santos que abalaram o mundo; René Fülöp-Miller; tradução de Oscar Mendes. - 31ª ed.. - Rio de Janeiro: José Olympio, 2023)