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sábado, 11 de julho de 2020

1808

Laurentino Gomes me capturou logo no início da sua primeira grande obra ao descrever a suntuosidade do Palácio de Mafra, residência de Dom João VI em 1807 e "um dos ícones dos tempos de glória e abundância do império colonial português". A descrição de um palácio tão arcaico, "mistura de palácio, igreja e convento", símbolo de um Estado absolutista, pesado e ineficiente, catapultou meu interesse. Logo depois, com a descrição do império decadente que Portugal havia se tornado no começo do século XIX e o preparativos para a fuga da família real, a leitura fluiu mais veloz do que os navios portugueses escoltados por navios ingleses em direção ao Brasil. 

1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil, Laurentino Gomes, São Paulo: Globo, é um livro que  veio para complementar o ensino de história nas escolas e reavivar o interesse dos brasileiros pela nossa história. É um livro complementar porque coloca uma lupa em um dos acontecimentos mais marcantes da história do Brasil. Para o bem e para o mal, segundo o autor, embora a certidão de nascimento do Brasil esteja mais recuada no tempo, o DNA do Brasil está em 1808, data em que se funda o Estado brasileiro, com toda a sua burocracia, leis e contornos.

Debruçando-se sobre a historiografia brasileira, Laurentino lança seu olhar de jornalista para compor uma grande reportagem sobre a chegada da Família Real ao Brasil e a sua estadia na colônia até 1821. Vale a pena! É uma contribuição inestimável à formação de leitores e cidadãos. Não havia lido por puro preconceito; desconfiava de um jornalista dando pitaco em história. Achava que seria um livro "menor", uma revista semanal ampliada, mas me enganei. De fato, no começo os historiadores torceram o nariz. Posteriormente, à medida que o tempo passou, a aceitação tornou-se maior. O subtítulo, por exemplo, que jamais seria adotado na academia, foi utilizado propositadamente por Laurentino para chamar a atenção do leitor e vender mais livros. A propósito, o sucesso editorial retumbante foi meticulosamente estudado e trabalhado pelo autor, cuja estratégia passou até pela resolução de não fazer noite de autógrafos. Laurentino preferiu vender muitos livros a ter prestígio na academia. Jornalista acostumado a escrever para a classe média, ele quis popularizar o ensino de história no Brasil, escrevendo em uma linguagem mais acessível. Deu certo!

Laurentino Gomes pesquisou mais de 100 livros para compor 1808. Sua pesquisa durou 10 anos. Ao se apresentar para o público e a grande mídia, o autor afirmou que não estava querendo competir com os historiadores, mas ocupar um espaço que estava vago. Assim, ele diz que se trata de uma grande reportagem sobre a vinda da Família Real para o Brasil no começo do século XIX. Acostumado ao ofício de jornalista, o autor esteve nos lugares que foram palcos dos acontecimentos narrados, como o Palácio de Queluz, o Palácio de Mafra, Salvador, Rio de Janeiro etc. Então, o livro foi feito com olhos de um experiente jornalista e com o coração de um historiador aprendiz entusiasmado. Houve um trabalho de pesquisa exaustivo. Em São Paulo, o autor pesquisou nas bibliotecas da PUC, da USP e na Biblioteca Mindlin; no Rio de Janeiro na Biblioteca Nacional, em Portugal na Biblioteca da Ajuda e, nos EUA, na Biblioteca de Washington. Também contou com a orientação, por assim dizer, embora não seja uma tese de mestrado, da historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias. 

Um ponto positivo do livro é falar sobre as guerras napoleônicas e contar os desdobramentos da invasão francesa em Portugal, com a subsequente Guerra Peninsular, na qual Portugal e Espanha combateram as tropas francesas, entre 1807 e 1814. Derrotado, Napoleão Bonaparte foi exilado na ilha de Elba e, posteriormente, na ilha de Santa Helena. Quando estudamos história no colégio, a grade curricular separa a história do Brasil de História Geral. Aqui, ligam-se os pontos e conseguimos visualizar os acontecimentos dos dois lados do Atlântico. O autor deixa claro que os 13 anos em que a corte de Dom João VI ficou no Brasil foram anos de tristeza, pobreza e desolação para os portugueses. Entre 1807 e 1814 Portugal perdeu meio milhão de habitantes, que morreram de fome, em batalha ou simplesmente migraram. 

O livro está organizado em capítulos mais ou menos lógicos e sequenciais. Assim, um dos desdobramentos da vinda da Corte para o Brasil foi a abertura dos Portos e o início da indústria manufatureira no Brasil, antes proibida. A descrição de Salvador, que já fora capital, é muito interessante. O capítulo sobre o Rio de Janeiro fornece um bom panorama sobre como era a capital do Brasil no começo do século XIX, inclusive com detalhes da história da vida privada. A escravidão também rende um capítulo à parte, com relatos dos escravos de ganho e dos negros forros. O capítulo sobre os Viajantes talvez seja um dos melhores, por ressaltar o olhar estrangeiro. 

Ao ler essa obra, adquire-se a convicção de que para entender o Brasil de hoje é fundamental estudar o Brasil Colônia (1500-1822), pois o Brasil de hoje ainda guarda muitos resquícios do passado. Imagens que ficam da formação da sociedade e do Estado brasileiros: autoritarismo, escravidão, futilidade das elites, corrupção, ignorância, analfabetismo e pouco apreço ao trabalho. Além do didatismo, o livro serve como uma porta de entrada para adentrar na história do Brasil por meio das obras clássicas da historiografia de Sérgio Buarque de Holanda, José Murilo de Carvalho, Boris Fausto e Lilia Schwartz, entre outros.