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segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Celso de Mello

Em agosto de 1989, quando Celso de Mello ingressou no Supremo Tribunal Federal, José Sarney era o presidente da República, a Constituição atual tinha apenas um ano de vida, o Brasil era assombrado pela inflação e ainda tentava consolidar um período de redemocratização. Depois de 21 anos de Ditadura Militar, o país preparava-se para sua primeira eleição presidencial. Os candidatos eram muitos, entre eles Aureliano Chaves, Leonel Brizola, Mário Covas, Paulo Maluf, Ronaldo Caiado, Roberto Freire, Ulysses Guimarães, Guilherme Afif Domingues, Luís Inácio Lula da Silva e Fernando Collor.

Naquela época, eu prestava vestibular para o curso de Direito, fazia cursinho no Anglo, ouvia Cazuza e Legião Urbana e sonhava que iria mudar o mundo. 31 anos depois, nesse mês de outubro de 2020, quando Celso de Mello sai do STF, pela aposentadoria compulsória, depois de bons serviços prestados, eu já tenho 49 anos, alguns tombos da vida que deixaram cicatrizes, duas faculdades, 13 anos como servidor público e uma noiva que amo de paixão. E o Brasil, o que mudou?  

Quando Celso de Mello foi nomeado ministro, o Supremo Tribunal Federal era um ilustre desconhecido. A grande maioria do povo não sabia para que servia. Ainda vigorava uma legislação arcaica que, paulatinamente, foi sendo substituída e modernizada junto com o Estado e a sociedade brasileira. Ainda estava em vigor o Código Civil de 1916, o Código Comercial de 1850, o Estatuto da Mulher Casada e não existia o arcabouço legislativo atual (ECA, Código do Consumidor, Lei 8.666/1993, Lei dos Crimes Hediondos, Lei da Ficha Limpa etc). O Brasil era outro. As músicas tocadas na rádio eram dos Titãs, Legião Urbana, Paralamas do Sucesso e Cazuza. De lá pra cá muita coisa mudou; algumas coisas pra melhor, outras pra pior. Enquanto Celso de Mello ficou 31 anos no STF, muitos ministros ingressaram e já se aposentaram, sendo que dois morreram no exercício do cargo: Menezes Direito e Teori Zavascki.

José Celso de Mello Filho nasceu em 1945 na cidade de Tatuí/SP, onde estudou, tendo completado o curso colegial nos Estados Unidos, onde se graduou na Robert E. Lee Senior High School, em Jacksonville, Flórida (1963/1964). Formado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de São Paulo em 1969, prestou concurso público, tornando-se Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo em 1970. Após passar por diversas comarcas e angariar extensa experiência, foi chamado pelo então ministro da Justiça, o advogado Saulo Ramos, para assessorá-lo em Brasília. Em 1989, foi nomeado ministro do STF, quando então pediu exoneração do MP paulista. Discreto, raramente concede entrevistas, o que é uma qualidade valiosíssima para um integrante da Suprema Corte. Nunca buscou os holofotes.

Já como ministro do STF, construiu uma sólida carreira como magistrado da excelsa Corte. Ficou conhecido não somente por seus votos longos e didáticos, mas também por suas ideias progressistas. Os votos de Celso de Mello representam imensa contribuição para o aperfeiçoamento da jurisprudência constitucional do STF após a Constituição Federal de 1988 e têm servido de base para a construção de novas linhas de pensamento na doutrina, sobretudo no campo do Direito Público, especialmente no tocante ao controle, pelo Poder Judiciário, da legalidade dos atos administrativos e da constitucionalidade dos atos parlamentares. Defensor incansável dos direitos e garantias fundamentais, foi um guardião da Constituição Federal. Vai deixar saudades. E vai deixar uma lacuna que dificilmente será preenchida.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

As moradas do castelo interior

Há livros que não perdem a atualidade. As moradas do castelo interior, Teresa de Ávila; tradução Antonio Fernando Borges, É  Realizações, 2014 é um deles. Esse livro atemporal, escrito no século XVI, no crepúsculo da Idade Média é um convite à vida interior e à comunhão com Deus. Tal jornada demanda um longo caminho; na verdade, nos convida a entrar nesse castelo interior que cada um de nós guarda dentro de si. Teresa se vale de uma metáfora: nossa alma é um castelo composto de muitos aposentos. Jesus não disse, "há muitas moradas na casa de meu Pai"? Muitas coisas existem tanto no plano material quanto no plano espiritual, por isso que rezamos no Pai-Nosso "assim na Terra como no Céu". Desse modo, assim como há muitas moradas na casa do Senhor, há muitas moradas dentro do nosso castelo interior. E Teresa de Ávila nos ensina como adentrar nesse castelo e nos aproximar de Deus. 

Teresa de Cepeda y Ahumada nasceu em Àvila, na Espanha, em 1515. Com a morte de sua mãe, entrou para o convento das Agostinianas. Em 1532, recebeu a primeira aparição do Senhor. Fez parte da Ordem das Carmelitas descalças. Viajava com frequência. Orou e escreveu muito em sua vida, deixando as "Obras Completas". Cheguei à este livro por indicação de vídeos no You Tube, de duas pessoas que admiro: Haroldo Dutra Dias, palestrante espírita, e Frei Betto. Ambos ressaltam a pureza de Santa Teresa e o grande valor espiritual e literário de sua obra.

Teresa de Ávila, com sua escrita inspirada, nos conta que são 7 as moradas do castelo interior. Em primeiro lugar, para adentrar o castelo, é preciso fazer um recolhimento, é preciso meditação e oração. Noto que, nesses tempos de redes sociais, é necessário deixar um pouco o celular de lado e se dedicar alguns minutos à meditação diária. De uma maneira geral, as três primeiras moradas são as mais difíceis, requerendo esforço pessoal e persistência. A quarta morada é intermediária, onde aprende-se a amar. Não se pode pensar ou racionalizar muito, mas amar a Deus sobre todas as coisas. E depois, amar ao próximo como a si mesmo. As últimas moradas são um pouco mais fáceis, mas requerem concentração e propósito. Trata-se de um clássico da espiritualidade.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

1968 - O ano que não terminou

É um livro que narra os principais acontecimentos e a atmosfera vivida no dramático e tumultuado ano de 1968. Naquela época, acreditava-se no poder jovem como catalisador de mudanças sociais e comportamentais. Os jovens entre 18 e 30 anos compunham uma geração contestadora, que lia muito e amava a ideia de revolução. Havia um sentimento de urgência, mas também de radicalização e intolerância. Li pela primeira vez em 1989, quando tinha 17 anos. Confesso que me empolguei mais naquela época do que agora, mas foi ótimo reler. 

O ano de 1968 se desenrola num contexto de mudanças e lutas sociais. No mundo, havia a guerra fria, a guerra do Vietnã, a Primavera de Praga, o Maio de 68 em Paris, a luta pelos direitos civis nos EUA, com os discursos do pastor Martin Luther King e o movimento feminista, entre outros. Já no Brasil, havia a Ditadura Militar, uma efervescência cultural (no teatro, no cinema e na música), um crescente descontentamento com o governo militar, e o movimento estudantil.

Zuenir Ventura é um jornalista e escritor mineiro que fez carreira no Rio de Janeiro. Passou por várias redações e escreveu Cidade Partida, vencedor do Prêmio Jabuti. De fala mansa e temperamento afável, é um bom conversador. Talvez isso o tenha ajudado nas entrevistas que fez para compor esse livro de memórias. Generoso, faz um longo agradecimento ao final.

Os personagens revisitados são muitos. Impossível nomeá-los todos aqui. Mas logo no começo da leitura, é engraçado constatar que, na época, havia a chamada esquerda reformista, composta pelo PCB (o Partidão), setores da intelectualidade e artistas engajados, como Ferreira Gullar, Flávio Rangel, Teresa Raquel, Ziraldo, Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes, Teresa Aragão, Walmor Chagas, Cacilda Becker, entre outros e, de outro lado, a esquerda revolucionária, composta pelo PC do B, pela ALN, por artistas mais radicais, como José Celso Martinez Corrêa, e pela maioria do movimento estudantil, que contava com César Queiros Benjamin, Vladimir Palmeira, Franklin Martins, Luis Travassos, José Dirceu e Fernando Gabeira. Há um toque de humor no livro, quando o autor diz que, à época, quase ninguém se declarava de direita, a não ser os militares, os políticos da Arena e Nelson Rodrigues. Sabemos hoje que a direita era composta por mais gente, inclusive setores da classe média, que apoiou o Golpe de 64 e, depois, ficou assustada com a repressão militar. A narrativa, portanto, é composta por personagens reais, de carne e osso, que depois tomaram rumos diferentes na vida.  

Lançado em 1988, 1968: o ano que não terminou, Zuenir Ventura, 2ª edição, Rio de Janeiro: Objetiva é um livro que foi escrito com alma. Não deixa de ser um acerto de contas do autor com o período, ou uma tentativa bem sucedida de digerir aquilo tudo e dar um significado para o turbulento ano, que começou com uma festa de Reveillon e terminou com o Ato Institucional nº 5, o chamado "golpe dentro do golpe". A propósito, o livro narra não só a reunião ministerial que culminou com o AI-5, como também as prisões arbitrárias ocorridas logo depois, inclusive as de Juscelino Kubistchek, Caetano Veloso e Gilberto Gil, e Sobral Pinto, resgatando  memória desse corajoso advogado. Quando perguntado, recentemente, em um programa de televisão, sobre a apatia dos jovens de hoje em relação àquela juventude de 1968, Zuenir não condena os jovens de hoje. Conciliador, disse: "o mundo mudou".

sábado, 11 de julho de 2020

1808

Laurentino Gomes me capturou logo no início da sua primeira grande obra ao descrever a suntuosidade do Palácio de Mafra, residência de Dom João VI em 1807 e "um dos ícones dos tempos de glória e abundância do império colonial português". A descrição de um palácio tão arcaico, "mistura de palácio, igreja e convento", símbolo de um Estado absolutista, pesado e ineficiente, catapultou meu interesse. Logo depois, com a descrição do império decadente que Portugal havia se tornado no começo do século XIX e o preparativos para a fuga da família real, a leitura fluiu mais veloz do que os navios portugueses escoltados por navios ingleses em direção ao Brasil. 

1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil, Laurentino Gomes, São Paulo: Globo, é um livro que  veio para complementar o ensino de história nas escolas e reavivar o interesse dos brasileiros pela nossa história. É um livro complementar porque coloca uma lupa em um dos acontecimentos mais marcantes da história do Brasil. Para o bem e para o mal, segundo o autor, embora a certidão de nascimento do Brasil esteja mais recuada no tempo, o DNA do Brasil está em 1808, data em que se funda o Estado brasileiro, com toda a sua burocracia, leis e contornos.

Debruçando-se sobre a historiografia brasileira, Laurentino lança seu olhar de jornalista para compor uma grande reportagem sobre a chegada da Família Real ao Brasil e a sua estadia na colônia até 1821. Vale a pena! É uma contribuição inestimável à formação de leitores e cidadãos. Não havia lido por puro preconceito; desconfiava de um jornalista dando pitaco em história. Achava que seria um livro "menor", uma revista semanal ampliada, mas me enganei. De fato, no começo os historiadores torceram o nariz. Posteriormente, à medida que o tempo passou, a aceitação tornou-se maior. O subtítulo, por exemplo, que jamais seria adotado na academia, foi utilizado propositadamente por Laurentino para chamar a atenção do leitor e vender mais livros. A propósito, o sucesso editorial retumbante foi meticulosamente estudado e trabalhado pelo autor, cuja estratégia passou até pela resolução de não fazer noite de autógrafos. Laurentino preferiu vender muitos livros a ter prestígio na academia. Jornalista acostumado a escrever para a classe média, ele quis popularizar o ensino de história no Brasil, escrevendo em uma linguagem mais acessível. Deu certo!

Laurentino Gomes pesquisou mais de 100 livros para compor 1808. Sua pesquisa durou 10 anos. Ao se apresentar para o público e a grande mídia, o autor afirmou que não estava querendo competir com os historiadores, mas ocupar um espaço que estava vago. Assim, ele diz que se trata de uma grande reportagem sobre a vinda da Família Real para o Brasil no começo do século XIX. Acostumado ao ofício de jornalista, o autor esteve nos lugares que foram palcos dos acontecimentos narrados, como o Palácio de Queluz, o Palácio de Mafra, Salvador, Rio de Janeiro etc. Então, o livro foi feito com olhos de um experiente jornalista e com o coração de um historiador aprendiz entusiasmado. Houve um trabalho de pesquisa exaustivo. Em São Paulo, o autor pesquisou nas bibliotecas da PUC, da USP e na Biblioteca Mindlin; no Rio de Janeiro na Biblioteca Nacional, em Portugal na Biblioteca da Ajuda e, nos EUA, na Biblioteca de Washington. Também contou com a orientação, por assim dizer, embora não seja uma tese de mestrado, da historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias. 

Um ponto positivo do livro é falar sobre as guerras napoleônicas e contar os desdobramentos da invasão francesa em Portugal, com a subsequente Guerra Peninsular, na qual Portugal e Espanha combateram as tropas francesas, entre 1807 e 1814. Derrotado, Napoleão Bonaparte foi exilado na ilha de Elba e, posteriormente, na ilha de Santa Helena. Quando estudamos história no colégio, a grade curricular separa a história do Brasil de História Geral. Aqui, ligam-se os pontos e conseguimos visualizar os acontecimentos dos dois lados do Atlântico. O autor deixa claro que os 13 anos em que a corte de Dom João VI ficou no Brasil foram anos de tristeza, pobreza e desolação para os portugueses. Entre 1807 e 1814 Portugal perdeu meio milhão de habitantes, que morreram de fome, em batalha ou simplesmente migraram. 

O livro está organizado em capítulos mais ou menos lógicos e sequenciais. Assim, um dos desdobramentos da vinda da Corte para o Brasil foi a abertura dos Portos e o início da indústria manufatureira no Brasil, antes proibida. A descrição de Salvador, que já fora capital, é muito interessante. O capítulo sobre o Rio de Janeiro fornece um bom panorama sobre como era a capital do Brasil no começo do século XIX, inclusive com detalhes da história da vida privada. A escravidão também rende um capítulo à parte, com relatos dos escravos de ganho e dos negros forros. O capítulo sobre os Viajantes talvez seja um dos melhores, por ressaltar o olhar estrangeiro. 

Ao ler essa obra, adquire-se a convicção de que para entender o Brasil de hoje é fundamental estudar o Brasil Colônia (1500-1822), pois o Brasil de hoje ainda guarda muitos resquícios do passado. Imagens que ficam da formação da sociedade e do Estado brasileiros: autoritarismo, escravidão, futilidade das elites, corrupção, ignorância, analfabetismo e pouco apreço ao trabalho. Além do didatismo, o livro serve como uma porta de entrada para adentrar na história do Brasil por meio das obras clássicas da historiografia de Sérgio Buarque de Holanda, José Murilo de Carvalho, Boris Fausto e Lilia Schwartz, entre outros.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Quarentena

Comecei a escrever esse texto quando o Brasil havia atingido mais de 20 mil mortos pelo Covid-19. Agora, em meados de junho, já passamos de 40 mil. O vírus, que teve origem na China, varreu o planeta, colocou o mundo de ponta-cabeça e vai ceifando vidas... Muito triste. Um micro-organismo, invisível a olho nu, subverteu a ordem mundial, derrubou economias e impôs uma quarentena global. Isso dá o que pensar... Para mim, é inequívoco o recado espiritual das esferas superiores. Nós, habitantes desse planeta, precisamos evoluir, precisamos nos tornar pessoas melhores.

O vírus nos obrigou a uma quarentena forçada. Para quem quiser, dá até para escrever um diário de bordo. Não podemos sair de casa. Então, cada qual pode escrever seu diário como se estivesse a navegar em um oceano, cada qual em sua cabine, mas, no final, creio que estamos todos no mesmo barco, no mesmo navio. Houve quem fizesse outra metáfora, dizendo que estamos todos no mesmo oceano tempestuoso, mas navegando em distintas embarcações.

Em quarentena forçada desde 20/03/2020, ao longo das semanas, consegui perceber uma mudança de humor em mim e nas pessoas mais próximas. No começo foi uma alegria. Uma sensação de tirar um longo feriado e poder trabalhar sem sair de casa. É claro que havia, ao mesmo tempo, medo de contrair o vírus, mas a esperança dava o tom. Vimos isso também na Itália, quando as pessoas saiam na varanda para cantar. Depois, veio a preocupação real. Ficamos assustados com as notícias. Lavar as mãos 70 vezes por dia passou a ser normal (vamos todos desenvolver esse TOC?). Nunca sair sem o álcool em gel no bolso. Depois, com algumas semanas em quarentena, veio um sentimento de cansaço, exaustão. O desafio de pilotar o fogão, fazer a faxina e dar conta do "home office", principalmente dos prazos. E depois, com tantos dias, recluso, confesso que me senti exasperado, agoniado. A solução foi fazer coisas boas e/ou necessárias, como cozinhar, trabalhar, namorar por WhatsApp, meditar, fazer Pilates e ouvir palestras espíritas. E, pelo menos aqui, no Brasil, entre panelaços, feriados esquisitos (antecipados) fui me protegendo e ficando em casa, trabalhando quieto no meu barco. Uma inspiração foi reler "Cem dias entre céu e mar", de Amyr Klink, verdadeira odisseia dos tempos modernos. 

Assim como milhões de pessoas, eu também tive que me adaptar à quarentena forçada. Servidor público, ligado à área da Justiça, aprendi a trabalhar no modo "home office", ou teletrabalho. Reaprendi a cozinhar. Fiz pratos que eu não sabia que seria capaz, como abobrinha refogada, couve na manteiga, filé de frango acebolado, tilápia ao forno. Tive mais tempo para ler, refletir, falar com a namorada (que está nos EUA, mas a salvo, no Havaí), chorar a partida de minha mãe, que faleceu (não por Covid-19, mas por leucemia), passar pelo luto, bem como falar com os amigos e parentes.

Agora, dia 20 de junho, completarei 90 dias de confinamento. Só saio para ir ao supermercado e visitar meu pai. Fiquei mais espiritualizado. Ouvi muitas palestras espíritas pela internet, sobretudo de Divaldo Franco e Haroldo Dutra Dias. Participei das orações de um vizinho, do prédio em frente ao que moro, que todo dia puxa oração às 21h. Católico fervoroso, ele sempre fala algumas palavras ensaiadas sobre o Evangelho ou algum santo ou um pensamento de união e amor, e depois puxa um Pai-Nosso e uma Ave-Maria. É muito bom!

Creio que essa pandemia tem vários significados. E creio que muita coisa vai mudar depois do coronavírus. O mundo não será como antes. Nações, governos, famílias, vizinhos, empresas, sistemas de saúde, sistemas de transporte, tudo terá que se readaptar ao mundo pós-covid-19. Espero que mude para melhor. O mundo ficará mais tecnológico. A ciência vai progredir mais rápido. O vírus vai acarretar uma aceleração do progresso moral da humanidade. Teremos que aprender o valor da solidariedade, da empatia, do amor ao próximo, da redução das desigualdades sociais. Governos deverão continuar com a ajuda financeira aos mais pobres, aos trabalhadores autônomos e informais e à desoneração tributária para pequenas e médias empresas. Um espécie de Plano Marshall para o século XXI.

O mais importante, contudo, talvez seja extrairmos um significado para tudo isso que está acontecendo. Perceber as mensagens da pandemia. Eu, cá do meu lado, imagino o espírito de Sócrates a nos dizer: - Antes de querer conhecer o mundo, "conhece-te a ti mesmo". Antes de querer dominar as coisas exteriores, primeiro conheça e domine as coisas da sua própria casa. Também é possível ouvir a seguinte mensagem: Cuide dos teus sentimentos. Eleve os teus pensamentos. Ore! Isso vai passar!

domingo, 26 de abril de 2020

Meu velho centro


Há livros que são verdadeiros passeios. Você viaja, voa, percorre lugares sem sair do sofá. Meu velho centro: histórias do coração de São Paulo, Heródoto Barbeiro, São Paulo: Boitempo, 2009, 159 pág., é um desses. É um livro gostoso de ler. Trata-se, basicamente, de um roteiro sentimental da cidade de São Paulo. Um giro pela Sé, pela Praça João Mendes, pela Rua dos Estudantes, pela Praça da Bandeira, pelo Brás... tudo por meio do olhar de quem nasceu e cresceu na cidade, percorrendo suas vielas, esquinas e bairros desde menino.

Heródoto Barbeiro é um jornalista que trabalhou na rádio CBN e na TV Cultura. Nascido em 1946, foi office boy, mecânico, borracheiro e professor de inglês. Formado em História pela USP, foi professor de história contemporânea por 25 anos no Colégio Objetivo. Heródoto só foi cursar jornalismo após um convite para trabalhar na Rádio Jovem Pan, onde foi exigido que tivesse o diploma. Em 1991 participou da criação da rádio CBN.  Sua carreira na televisão começou na década de 70, na TV Gazeta. Na TV Cultura, onde esteve por 17 anos, foi apresentador de vários programas. Em 2011, deixou as citadas emissoras para trabalhar na Record News.

Pela leitura da obra acima, descobre-se que Heródoto é um espírito leve. E, pela sua biografia, um espírito inquieto e trabalhador. Meu irmão, que é um "workaholic" (trabalhador compulsivo), contava lá pelos idos dos anos 2000 que ia pra casa, depois do trabalho, ouvindo o Heródoto no rádio e, quando acordava, pulava da cama ouvindo o mesmo jornalista a dar notícias na CBN. O livro é melhor aproveitado por aqueles que conhecem o centro velho da cidade de São Paulo e adjacências e por aqueles que tem uma relação afetiva com a cidade. É próprio do ser humano desenvolver um amor pelo lugar onde fomos criados. Tem um capítulo sobre as igrejas do velho centro, inclusive igrejas que eu nunca havia ouvido falar, como a Igreja da paz e a Igreja de São Gonçalo.

Heródoto, que morou na Rua Nioac, ao lado da Rua Tabatinguera, sabe do que fala. Escrito por quem nasceu e cresceu na Baixada do Glicério, o livro é um entrelaçamento da história da cidade com a biografia do autor e, por tabela, um passeio pelas histórias de anônimos que conviveram com ele. Para mim, que só fui conhecer o centro velho nos anos 90, quando era estagiário de Direito, e tinha que percorrer os fóruns e repartições publicas da capital, é uma delícia ler os relatos de como era a cidade nos anos 50 e 60. A São Paulo do bonde, da pressa, do trabalho incessante, dos cortiços, dos galinheiros... Isso mesmo! O livro conta que havia galinheiros na Rua 25 de Março. E era comum, nos anos 60, ver transeuntes com uma penosa de baixo do braço ou com a cabeça da galinha pra fora, dentro de numa sacola, em um ônibus da CMTC. 

Apesar do caráter saudosista, Heródoto não se furta à críticas de equívocos das anteriores administrações da municipalidade, como a determinação da Prefeitura de acabar com os bondes, tendo em vista o consenso que se formou na época, segundo o qual os bondes "representavam o atraso e impediam o progresso".  O autor, que certa vez foi à Berna, na Suíça, conta que por lá sempre pegava bonde. E questiona: "Como podem existir bondes em um país de primeiro mundo, se o bonde é sinônimo de atraso? Ou será que manipularam a opinião do paulistano para que eles fossem trocados por ônibus, fabricados pelas recém-estabelecidas multinacionais no ABC?".   

Há um capítulo delicioso com os "tipos inesquecíveis", como a Dona Juventina (que vivia na janela e sabia da vida de todo mundo) e seu irmão Felipe, um tipo franzino, professor de piano, e que quase nunca saía de casa. Ou o velho Manuel Raimundo, o primeiro espírita que Heródoto conheceu, descendente de escravos e que "jamais foi visto sem terno e chapéu de feltro". Esses e outros relatos levou Danilo Santos de Miranda a escrever, na orelha do livro, que sob as sucessivas camadas de cimento e concreto usadas para a construção da cidade, remanesce a memória afetiva dos paulistanos, sendo que o fio condutor que percorre todo o livro é o do sentimento.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Os meninos da rua Paulo

Há livros que se pode ler e reler em qualquer idade. É o caso de Os meninos da rua Paulo, Ferenc Molnár, Cosac Naify, 263 pág. O livro foi escrito pelo húngaro Ferenc Molnár em 1907 e retrata as brincadeiras de um grupo de meninos em Budapeste. Em processo de modernização e industrialização, a capital da Hungria vivia um tempo de mudanças em que antigos terrenos baldios começavam a dar lugar a prédios e indústrias. O autor consegue captar o espírito da época ao narrar as aulas de latim, de ciências, a rigidez dos professores, bem como a necessidade dos meninos de ganhar as ruas depois do almoço para simularem um exército, brincarem de soldado e jogarem péla (espécie de jogo que lembra o tênis). 

Trata-se de uma pequena obra prima que continua a encantar gerações de leitores. Publicado no Brasil pela primeira vez em 1952, tornou-se um clássico da literatura infanto-juvenil. Escrito num tempo em que havia muitas guerras, o enredo espelha o espírito beligerante da época e conta com um final pungente. A saborosa edição do livro, na fotografia ao lado, é da saudosa editora Cosac Naify (que fechou as portas em 2015 devido à crise econômica brasileira), com tradução e prefácio de Paulo Ronái, revisão de Aurélio Buarque de Holanda e ilustrações de Tibor Gergely. Fica claro que o livro foi escrito por alguém que viveu aquelas aventuras no grund em Budapeste. É preciso sensibilidade para olhar para trás e contar as aventuras de um grupo de meninos que reproduziam, em pequena escala, o mundo dos adultos. Bem por isso, Paulo Ronái nos conta que a história "foi relatada por um dos seus participantes, ainda bastante perto da mocidade para levá-la a sério, já bastante longe para dela sentir saudades".

Para finalizar, melhor citarmos um trecho do irretocável prefácio: "Não cabe resumir aqui os episódios da história, divertidos ou patéticos, nem a descrição da batalha final, palpitante e dramática; nem retratar as personagens, o grave Boka, o temível Chico Áts, o ambíguo Geréb, o franzino Nemecsek, único soldado raso, que se revela nos últimos capítulos. Deixemos o leitor descobri-los, um por um, conhecê-los de perto, familiarizar-se com eles para nunca mais esquecê-los. Pois os meninos da rua Paulo é dessas leituras que nos acompanham pela vida a fora, livro de aventuras que vale por um estudo de psicologia, livro de memórias em que não se percebe a presença do autor, livro de guerra que nos reconcilia com a humanidade".


sexta-feira, 27 de março de 2020

Os onze



Trata-se de mais um livro sobre o Supremo Tribunal Federal, um ilustre desconhecido nas décadas anteriores que se tornou uma vidraça na qual todos atiram pedras nos tempos atuais. Uma espécie de Geni dos tempos pós-modernos. É um livro de bastidores, quase um livro de fofocas. De todos os Ministros da composição atual, somente Celso de Mello e Rosa Weber são poupados. Todos os outros são revelados por uma lupa que destaca seus defeitos e idiossincrasias. Luiz Fux é retratado como um "vira casaca", um Ministro adepto do garantismo no Direito Penal enquanto atuava no STJ, que mudou de posição e foi para o lado do punitivismo assim que começou a receber as primeiras críticas ferozes por decisões tomadas na "Operação Lava Jato". O livro revela que Gilmar Mendes é um dos políticos mais influentes de Brasília, ou seja, nem parece um membro do Judiciário, flertando e assumindo papéis do Poder Executivo. E, óbvio ululante, Joaquim Barbosa pecava pela falta de controle emocional.

Desse modo, os livros do jurista Joaquim Falcão conseguem fazer uma radiografia mais institucional da Excelsa Corte, contribuindo mais para pensar o Supremo e para o aprimoramento da Corte Constitucional. Contudo, Os onze - O STF, seus bastidores e suas crises, Companhia das Letras, tem o seu mérito por demonstrar que o STF é um tribunal político. Sempre foi, mesmo quando omisso e contido décadas atrás. Também tem o seu mérito por demonstrar que o julgamento do Mensalão foi um ponto fora da curva, um ponto de inflexão que tirou o STF da sombra e o trouxe para o centro do palco das grandes decisões do país. Para o bem e para o mal, depois do Mensalão o STF nunca foi mais o mesmo.