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quinta-feira, 27 de abril de 2023

Menina de ouro

Boxe é a magia de lutar além da resistência, "é a magia de arriscar tudo por um sonho que só você vê", diz a certa altura Scrap (Morgan Freeman), personagem e narrador do filme "Million Dollar baby" (Menina de ouro), 2005, filme dirigido e atuado por Clint Eastwood e com roteiro de Paul Haggis. A trilha sonora é composta de uma única música de piano, melancólica, que dá o tom emocional da trama. A medida que Eastwood foi envelhecendo foi tornando-se minimalista na direção.

Frankie Dunn (Clint Eastwood) é um cara "casca grossa", passou a vida nos ringues, tendo agenciado e treinado grandes boxeadores. Sua sala está cheia de troféus, mas ele já está numa fase decadente. Magoado com o afastamento de sua filha, Frankie apenas se relaciona com Scrap (Morgan Freeman), seu único amigo, que cuida também de seu ginásio. Até que surge Maggie Fitzgerald (Hilary Swank), uma jovem determinada que possui um dom ainda não lapidado para lutar boxe. Maggie quer que Frankie a treine, mas ele não aceita treinar mulheres. Apesar da negativa, Maggie decide treinar mesmo assim e insiste. Vencido pela determinação de Maggie, Frankie finalmente aceita treiná-la. 

Maggie chega do escuro, do nada, da sarjeta para tentar a glória num ginásio decadente em Los Angeles. Um sonho impossível. Ela veio do Missouri, da parte profunda dos EUA, daqueles americanos caipiras. Ela cresceu sabendo que era pobre, fazendo parte daquela camada social que é considerada trash, a ralé, que serve os fregueses, que limpa as mesas e varre o chão. No fundo, é a camada que faz o mundo girar, pois sem eles não haveria nenhum tipo de serviço (a cena em que ela limpa mesas foi filmada em Venice Beach, Los Angeles). Maggie é uma moça que não tem nada de material. Vive uma vida simples de proletária e mora num pardieiro. Ao mesmo tempo, ela é vontade, coração, músculo, pulmão, gana, tudo! Ela encarna a busca americana por uma oportunidade. Hilary Swank convence no papel, tanto assim, que ganhou o Oscar de melhor atriz nesse filme. Quando Frankie finalmente aceita treiná-la, ela parece uma criança de tanta felicidade! Ela não quer caridade, nem favores. Ela só quer lutar boxe profissional e quiçá ser campeã. Aliás, ela tem certeza que será campeã.

Mas o filme é triste. Há golpes da vida que nos derrubam às vezes. Golpes, pancadas, deslealdades. Há golpes da sorte ou do destino... Bem por isso Frankie costuma passar aos lutadores sua regra número um: lute, mas proteja-se o tempo todo. Mesmo assim, há conflitos, como na vida real, que parecem insolúveis. Há o afastamento da filha de Frankie que, apesar das dezenas de cartas, nunca lhe responde, nunca dá sinal de vida. Há também a ingratidão da família de Maggie, composta por um bando de aproveitadores. Não se compra o amor de ninguém. Abandonados, por assim dizer, por seus familiares, Frankie e Maggie tem um ao outro. Treinador e lutadora. "Mo Cuishle".  

Cinema e boxe foi um casamento que deu certo, haja vista os filmes "Touro indomável", de Scorsese, a saga Rocky, com Sylvester Stalonne e inúmeros outros. O boxe é uma metáfora da vida. Afinal, a vida é luta! A vida é feita de derrotas e vitórias. A vida é uma questão de manter o equilíbrio, apesar de todos os socos e golpes que sofremos. 

Lembro que fui assistir "Menina de ouro" no cinema, no Gemini, da Av. Paulista em São Paulo. No tempo dos cinemas de rua... Fui duas vezes e chorei as duas vezes. Filme bom é aquele que te emociona ou faz pensar. Esse faz as duas coisas, com o toque sutil de Eastwood, no auge da direção. No meio de tantas porcarias hoje em dia no streaming, esse é uma filme que vale a pena ser visto e revisto. Não é o melhor filme de Clint Eastwood como diretor, mas é um dos cinco melhores. 

quinta-feira, 6 de abril de 2023

A batalha das biografias

O maior trauma do "rei" Roberto Carlos ocorreu em sua cidade natal, Cachoeiro do Itapemirim/ES, aos 6 anos, quando um trem passou por cima de sua perna, o que lhe custou uma amputação logo abaixo do joelho. De outro lado, o maior trauma de Paulo Cesar Araújo ocorreu no dia 27 de janeiro de 2007 no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo/SP, quando, depois de 6 horas de audiência, na condição de réu em uma ação penal privada movida por seu ídolo, viu-se obrigado a assinar um acordo com o querelante e com os representantes da editora Planeta, o que significou a proibição e a retirada de circulação do livro Roberto Carlos em detalhes, fruto de laboriosos 15 anos de pesquisa. O escritor se sentiu abandonado pelos advogados da editora Planeta. Ambos tiveram perdas na vida. Não por acaso, traumas, é o título de uma das canções de Roberto. 

A sorte é que os traumas podem ser superados. Roberto Carlos aprendeu a conviver com a amputação da perna, tornou-se um cantor, buscou o sucesso, deu a volta por cima com a Jovem Guarda e o resto é história. Que, aliás, merece ser contada! Paulo Cesar de Araújo não desistiu daquela derrota no acordo judicial celebrado no Fórum da Barra Funda, que significou a proibição do seu livro e foi à luta. Para quem gosta de história da MPB, de biografias, de pesquisa, de Roberto Carlos, de batalha jurídica ou de tudo isso junto, recomendo a obra O réu e o rei: minha história com Roberto Carlos, em detalhes, Paulo Cesar de Araújo, 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 

Roberto Carlos é um artista incontestável, pelo sucesso e pela discografia. Eu mesmo que nasci em 1971 e cresci nos anos 80, achava na minha adolescência suas músicas bregas e piegas. Até que depois dos 30 anos me apaixonei e num momento de separação da minha atual mulher, um momento de muitas saudades, ouvi toda a discografia do Roberto Carlos dos anos 70, para mim indiscutivelmente a melhor fase do artista, e me rendi ao seu inegável talento. Mas o que fez Roberto Carlos processar o autor de sua biografia? Na cabeça de Roberto Carlos era inadmissível que uma terceira pessoa desconhecida contasse a sua história, incluindo momentos doloroso e íntimos, explorando a vida privada do cantor e ganhando dinheiro com isso. Ele viu exploração comercial. Na cabeça de RC, malgrado ele seja um artista famoso, somente ele poderia contar a sua própria história. Contudo, é sabido que os artistas são pessoas públicas, que fazem parte da história cultural do Brasil, de modo que é óbvio que, num país sério, com liberdade artística e de expressão, uma biografia respeitosa escrita por um autor sério não poderia se proibida como foi. Além disso, o próprio Roberto Carlos já contou trechos e momentos muito dolorosos e íntimos de sua própria vida em muitas canções confessionais. Falou de momentos difíceis da infância na música "O Divã", falou das dores pós acidente na música "Traumas"; de sua cidade natal na música "Meu pequeno Cachoeiro"; da vida conjugal na música "Quando as crianças saírem de férias"; do pai na música "Meu querido, meu velho, meu amigo"; do amigo Erasmo Carlos na música "Amigo"; da mãe na música "Lady Laura" e de sua fé na música "Jesus Cristo", entre tantas outras músicas confessionais.

O réu foi inteligente. Impedido de comercializar sua obra, por conta de um acordo judicial discutível, trazido à fórceps pela vontade e pressão do cantor em proibir aquela obra, de um juiz imparcial, de um entendimento de se proibir a publicação de biografias não autorizadas à época, da interpretação do art. 20 do Código Civil e de um medo da editora Planeta de pagar uma multa milionária, Paulo Cesar de Araújo mudou de tática. Ele então contou a história da sua vida, desde que era menino em Vitória da Conquista e comprava os discos de seu ídolo, passando por seu gosto por música nacional, pelo trabalho na ótica, pelas faculdades que cursou até a sua carreira como pesquisador e escritor. O livro que lhe rendeu mais alegria e não foi censurado foi "Eu não sou cachorro não", sobre a dita música brega e a coragem importância desses artistas, como Odair José e Agnaldo Timóteo, escrito e lançado antes do livro que foi censurado pelo "rei". 

Pesquisador incansável, Paulo Cesar de Araújo pelejou para entrevistar Tom Jobim, o primeiro de sua lista. Depois conseguiu entrevistar Caetano Veloso e por aí a lista só engrossou. Paulo Cesar entrevistou praticamente todos os músicos, cantores e cantoras do Brasil, de Tim Maia a Wanderléia, de Waldick Soriano a Chico Buarque. Nessa busca por entrevistas que começou na década 90, uma das passagens mais inusitadas e divertidas do livro é a amizade que fez com ninguém menos do que João Gilberto. Buscando marcar uma entrevista com o inventor da Bossa Nova, o pesquisador telefonou para João Gilberto, apresentou seu projeto de pesquisa e perguntou se poderia entrevistá-lo. Este, que é conhecido por ser um artista recluso e adorar um papo por telefone, a ponto de Tim Maia dizer que "João Gilberto não é uma pessoa, é um telefone",  lá pelas tantas perguntou ao pesquisador: "Você é baiano?". A partir daí começou uma conversa de quase uma hora. Meses depois, retomando a conversa, ao saber que Paulo Cesar não falava há 13 anos com seu pai, João Gilberto se espantou e o aconselhou de forma veemente: "Um pai nunca esquece um filho. Pois escreva uma carta para ele e vai ver como tudo irá melhorar. Isso vai fazer um grande bem para todo mundo (...)". O autor seguiu os conselhos do artista e tudo ficou bem. 

Fazer um bem para todo mundo fez o plenário do STF, em 10/06/2015, quando julgou a ADI 4815, que liberou as biografias ditas não autorizadas. "Cala a boca já morreu", disse Carmem Lúcia, relatora da ação, ao dizer que, no caso, o direito à informação e à cultura é mais importante do que o direito à privacidade do biografado. E, caso o biógrafo ofenda o biografado ou falte com a verdade, o Direito Brasileiro já tem instrumentos para reparar o dano. A ação direta de inconstitucionalidade proposta pela ANEL (Associação Nacional dos Editores de Livros) foi julgada procedente "para dar interpretação conforme à Constituição aos arts. 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível autorização de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais (...)".  Mas até lá a batalha jurídica foi longa e o livro, que foi escrito antes do julgamento da ADI 4815, conta essa batalha. O autor conta os bastidores dos dois processos judiciais que Roberto Carlos lhe moveu: um cível e outro criminal. Como num processo terapêutico, ele conta tudo para superar seu trauma.