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quinta-feira, 6 de abril de 2023

A batalha das biografias

O maior trauma do "rei" Roberto Carlos ocorreu em sua cidade natal, Cachoeiro do Itapemirim/ES, aos 6 anos, quando um trem passou por cima de sua perna, o que lhe custou uma amputação logo abaixo do joelho. De outro lado, o maior trauma de Paulo Cesar Araújo ocorreu no dia 27 de janeiro de 2007 no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo/SP, quando, depois de 6 horas de audiência, na condição de réu em uma ação penal privada movida por seu ídolo, viu-se obrigado a assinar um acordo com o querelante e com os representantes da editora Planeta, o que significou a proibição e a retirada de circulação do livro Roberto Carlos em detalhes, fruto de laboriosos 15 anos de pesquisa. O escritor se sentiu abandonado pelos advogados da editora Planeta. Ambos tiveram perdas na vida. Não por acaso, traumas, é o título de uma das canções de Roberto. 

A sorte é que os traumas podem ser superados. Roberto Carlos aprendeu a conviver com a amputação da perna, tornou-se um cantor, buscou o sucesso, deu a volta por cima com a Jovem Guarda e o resto é história. Que, aliás, merece ser contada! Paulo Cesar de Araújo não desistiu daquela derrota no acordo judicial celebrado no Fórum da Barra Funda, que significou a proibição do seu livro e foi à luta. Para quem gosta de história da MPB, de biografias, de pesquisa, de Roberto Carlos, de batalha jurídica ou de tudo isso junto, recomendo a obra O réu e o rei: minha história com Roberto Carlos, em detalhes, Paulo Cesar de Araújo, 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 

Roberto Carlos é um artista incontestável, pelo sucesso e pela discografia. Eu mesmo que nasci em 1971 e cresci nos anos 80, achava na minha adolescência suas músicas bregas e piegas. Até que depois dos 30 anos me apaixonei e num momento de separação da minha atual mulher, um momento de muitas saudades, ouvi toda a discografia do Roberto Carlos dos anos 70, para mim indiscutivelmente a melhor fase do artista, e me rendi ao seu inegável talento. Mas o que fez Roberto Carlos processar o autor de sua biografia? Na cabeça de Roberto Carlos era inadmissível que uma terceira pessoa desconhecida contasse a sua história, incluindo momentos doloroso e íntimos, explorando a vida privada do cantor e ganhando dinheiro com isso. Ele viu exploração comercial. Na cabeça de RC, malgrado ele seja um artista famoso, somente ele poderia contar a sua própria história. Contudo, é sabido que os artistas são pessoas públicas, que fazem parte da história cultural do Brasil, de modo que é óbvio que, num país sério, com liberdade artística e de expressão, uma biografia respeitosa escrita por um autor sério não poderia se proibida como foi. Além disso, o próprio Roberto Carlos já contou trechos e momentos muito dolorosos e íntimos de sua própria vida em muitas canções confessionais. Falou de momentos difíceis da infância na música "O Divã", falou das dores pós acidente na música "Traumas"; de sua cidade natal na música "Meu pequeno Cachoeiro"; da vida conjugal na música "Quando as crianças saírem de férias"; do pai na música "Meu querido, meu velho, meu amigo"; do amigo Erasmo Carlos na música "Amigo"; da mãe na música "Lady Laura" e de sua fé na música "Jesus Cristo", entre tantas outras músicas confessionais.

O réu foi inteligente. Impedido de comercializar sua obra, por conta de um acordo judicial discutível, trazido à fórceps pela vontade e pressão do cantor em proibir aquela obra, de um juiz imparcial, de um entendimento de se proibir a publicação de biografias não autorizadas à época, da interpretação do art. 20 do Código Civil e de um medo da editora Planeta de pagar uma multa milionária, Paulo Cesar de Araújo mudou de tática. Ele então contou a história da sua vida, desde que era menino em Vitória da Conquista e comprava os discos de seu ídolo, passando por seu gosto por música nacional, pelo trabalho na ótica, pelas faculdades que cursou até a sua carreira como pesquisador e escritor. O livro que lhe rendeu mais alegria e não foi censurado foi "Eu não sou cachorro não", sobre a dita música brega e a coragem importância desses artistas, como Odair José e Agnaldo Timóteo, escrito e lançado antes do livro que foi censurado pelo "rei". 

Pesquisador incansável, Paulo Cesar de Araújo pelejou para entrevistar Tom Jobim, o primeiro de sua lista. Depois conseguiu entrevistar Caetano Veloso e por aí a lista só engrossou. Paulo Cesar entrevistou praticamente todos os músicos, cantores e cantoras do Brasil, de Tim Maia a Wanderléia, de Waldick Soriano a Chico Buarque. Nessa busca por entrevistas que começou na década 90, uma das passagens mais inusitadas e divertidas do livro é a amizade que fez com ninguém menos do que João Gilberto. Buscando marcar uma entrevista com o inventor da Bossa Nova, o pesquisador telefonou para João Gilberto, apresentou seu projeto de pesquisa e perguntou se poderia entrevistá-lo. Este, que é conhecido por ser um artista recluso e adorar um papo por telefone, a ponto de Tim Maia dizer que "João Gilberto não é uma pessoa, é um telefone",  lá pelas tantas perguntou ao pesquisador: "Você é baiano?". A partir daí começou uma conversa de quase uma hora. Meses depois, retomando a conversa, ao saber que Paulo Cesar não falava há 13 anos com seu pai, João Gilberto se espantou e o aconselhou de forma veemente: "Um pai nunca esquece um filho. Pois escreva uma carta para ele e vai ver como tudo irá melhorar. Isso vai fazer um grande bem para todo mundo (...)". O autor seguiu os conselhos do artista e tudo ficou bem. 

Fazer um bem para todo mundo fez o plenário do STF, em 10/06/2015, quando julgou a ADI 4815, que liberou as biografias ditas não autorizadas. "Cala a boca já morreu", disse Carmem Lúcia, relatora da ação, ao dizer que, no caso, o direito à informação e à cultura é mais importante do que o direito à privacidade do biografado. E, caso o biógrafo ofenda o biografado ou falte com a verdade, o Direito Brasileiro já tem instrumentos para reparar o dano. A ação direta de inconstitucionalidade proposta pela ANEL (Associação Nacional dos Editores de Livros) foi julgada procedente "para dar interpretação conforme à Constituição aos arts. 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível autorização de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais (...)".  Mas até lá a batalha jurídica foi longa e o livro, que foi escrito antes do julgamento da ADI 4815, conta essa batalha. O autor conta os bastidores dos dois processos judiciais que Roberto Carlos lhe moveu: um cível e outro criminal. Como num processo terapêutico, ele conta tudo para superar seu trauma.

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