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segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Rita Lee



Divertida, paulistana, doidinha, verdadeira, inteligente e debochada. Assim se revela uma das cantoras mais alto astral da terra brasilis. Rita Lee: uma autobiografia, Globo Livros, 292 páginas é gostoso de ler. Uma leitura leve. E, por não ter pretensões a ser um livro "fodaço", o resultado ficou ótimo. Nota-se que a cantora não quer impressionar, mas apenas passar sua vida a limpo e deixar um legado por escrito, exorcizando velhos fantasmas. Construído com capítulos curtos, o livro narra vida da artista, desde a infância, na "pacata Vila Mariana", quando morava com sua família no casarão da rua Joaquim Távora. Interessante ver, pelos relatos, como era a São Paulo daqueles tempos, mais bucólica, inocente e horizontal, com seus bondes, colégios e um Ibirapuera que ainda não era parque, mas uma mata fechada convidativa para pic-nics. E se Rita Lee era a "mais completa tradução" de Sampa, como disse Caetano Veloso, é preciso notar que a cidade piorou muito. Desumanizou-se.

Rita, uma mistura de sangue norte-americano (Charles) com sangue italiano (Chesa), virou uma menina viva e criativa. A cantora escreve de um jeito que o leitor desenvolve um olhar afetivo para toda a sua família, inclusive irmãs, agregadas e os bichos de estimação. A narrativa passa pelas brincadeiras infantis, quando era ela terrível e aprontava todas, pela adolescência, época em que era fã dos Beatles e de James Dean, e chega na época da vida adulta, quando encontrou o amor de sua vida e teve filhos.

Posso estar errado, mas suspeito que Rita Lee quis escrever sua própria biografia para não ficar sujeita a versões lá não muito confiáveis. Pela leitura, dá pra ver que ficaram traumas de "rasteiras" que ela levou, como ser expulsa dos Mutantes e ter sido presa durante a Ditadura Militar. Aliás, é a narrativa envolvente e engraçada que dá ao texto (principalmente nesses traumas da vida) um gosto peculiar e confidente, muito gostoso de acompanhar. Os irmãos Baptista (Arnaldo Baptista e Sérgio Dias) são chamados de "ozmano" e não são poupados da língua ferina da artista. Fica muito engraçado. Há rancores, mágoas e ressentimentos sim. Mas ela não se deixa afundar por causa disso. A leitura segue bem-humorada. Como boa e velha roqueira, ela exorciza os próprios demônios. É preciso ter coragem para se expor. Alvo constante de julgamento morais, ela sempre soube manter uma postura altiva. Bom que se diga, que ela não fez nada que pessoas da geração dela não fizeram, como fumar maconha, tomar LSD. Mas é que vivemos numa época chata, de muitas críticas. Neguinho não pode espirrar que já tá sendo criticado nas redes sociais. A Ovelha Negra é corajosa. 

É surpreendente ver a trajetória musical de Rita Lee, desde Os Mutantes até a sua consagração nos anos 80 ao lado do músico, guitarrista e marido, Roberto de Carvalho. Naquela época era um sucesso atrás do outro, como Lança-perfume, Só de você e On the rocks. Ao lado disso, ficamos sabendo de muitas coisas divertidas, como o "Bauretz" do Tim Maia, o QG baiano na Avenida São Luiz e as cobras do Alice Cooper que Rita Lee pegou para criar. Doida! E as amizades com Elis Regina, Ney Matogrosso Hebe Camargo e outros. Rita Lee é um espírito leve. O livro é um facho de luz nesses tempos sombrios em que vivemos. A biógrafa de si mesma revela-se uma combatente da hipocrisia e escreve com uma fina ironia. Sempre com bom humor. Lançado no final de 2016, a obra teve uma calorosa aceitação por parte do grande público.