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quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Memórias de um promotor público de São Paulo

Hélio Bicudo (1922-2018) foi promotor de Justiça de São Paulo, tendo atuado em Igarapava, Franca e Araçatuba antes de ser promovido para a capital. Defensor dos direitos humanos, atuou contra o Esquadrão da Morte na década de 70 e foi membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Também foi um dos membros fundadores do PT e deputado federal por dois mandatos, tendo se decepcionado com o partido e se desfiliado em 2005. O livro Minhas Memórias/Hélio Pereira Bicudo, São Paulo: Martins Fontes, 2006, 230 p. é conciso e, ao mesmo tempo, uma lição de vida. Um testemunho de alguém que procurou contribuir para a sociedade. Uma vida voltada ao interesse público.

Hélio Bicudo começa suas memórias contando sobre o chamado "Esquadrão da Morte", organização criminosa formada por policiais militares, que ajudou a combater. O esquadrão tinha esse nome porque matava pessoas. O pior criminoso é o policial criminoso; aquele que, investido em uma função estatal e protegido por uma farda e um distintivo, pratica crimes. Assim ele contextualiza: "O Brasil vivia o terceiro governo do regime militar instalado em 1964, presidido pelo General Emílio Garrastazu Médici. Desde 1968, com a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que restringiu direitos individuais e ampliou o poder discricionário do Estado, o país tinha passado a viver sob uma ditadura explícita. A oposição ao governo se intensificou com a guerrilha urbana, iniciada por grupos de esquerda, que agiam na clandestinidade. A reação a esse movimento se deu na forma de forte repressão, exercida por unidades militares e grupos policiais que não hesitaram em utilizar meios ilícitos de atuação, entre eles a tortura. Dentro desse contexto de acirramento político (...) uma série de assassinatos passaram a ocorrer na Grande São Paulo, atribuídos a uma organização que se autodenominava Esquadrão da Morte". Num contexto de crescimento da criminalidade, o esquadrão matava para mostrar serviço.

A luta contra o referido esquadrão foi longa e gerou contrariedade entre as autoridades da época. Nas palavras do autor, "o esquadrão contava com a benevolência do governador Abreu Sodré e dos seus secretários da Segurança". Assim, o promotor de justiça quase não obteve ajuda, tendo recebido o auxílio de apenas dois colegas promotores. Desse modo, foi difícil chegar à responsabilização dos assassinos, inclusive do chefe da organização, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, que tanta gente matou e torturou. Ao final, dos 35 policiais denunciados, apenas seis, de menor hierarquia, foram condenados. "Os delegados foram todos absolvidos. Eram intocáveis", conta. Para quem quiser se aprofundar no tema, vale ler Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte, do mesmo autor, publicado pela editora Martins Fontes, em 1976.   

Antes disso, na década de 50, Hélio Bicudo tentou, sem sucesso, responsabilizar o Governador de São Paulo Adhemar de Barros por negócios escusos. Dono do bordão "rouba, mas faz", Adhemar foi um político conservador que ficou famoso por tentar extorquir empresários e pedir propinas em troca de favores e concessão de obras. Uma figura polêmica, senão lendária. Adhemar de Barros foi condenado em 1956 e fugiu para a Bolívia. Posteriormente, o processo foi remetido para instâncias superiores que entenderam que esse caso estava encartado em outro processo, que culminou em absolvição. E tudo ficou por isso mesmo. É difícil fazer justiça no Brasil.

A carreira de Bicudo como promotor seguiu as regras do Ministério Público. Mas sua atuação era firme em busca da justiça; nunca concebeu uma atuação burocrática. Em Igarapava, ainda na década de 1940, o jovem promotor conseguiu, por meio de um acordo, fazer uma usina de Açúcar respeitar direitos trabalhistas de mais de uma centena de trabalhadores rurais. Em Franca, tentou responsabilizar uma dona de casa de prostituição mantida por "varões endinheirados da região", por submeter jovens a trabalhos análogos à escravidão. A iniciativa provocou uma enorme gritaria e incomodou gente graúda. Esse fato, aliado a uma investigação contra o Prefeito determinaram a mudança do promotor da Comarca. Em Sorocaba, Bicudo tentou responsabilizar um médico cirurgião por um homicídio culposo, que "esquecera uma pinça no abdome da parturiente", mas a abertura de inquérito gerou uma polêmica na cidade. Bicudo foi promovido e teve que mudar de comarca antes de sair a absolvição. "O espírito de classe falava mais alto, e não se compreendia que um médico sofresse um processo por desvio ou má conduta profissional". Sem privilegiar ou favorecer ninguém, o jovem promotor foi galgando degraus na carreira, do interior para a capital. "Creio que minha inclinação pela defesa dos direitos fundamentais decorreu do contato que a profissão me proporcionou com as camadas mais pobres e mais marginalizadas da população".

Bicudo também participou ativamente da vida política. Primeiramente trabalhou no Governo Carvalho Pinto (1959-1963), do qual foi assessor. Depois, no início dos anos 1980 participou da fundação do PT, onde teve um primeiro encanto e depois alguns desencontros... O livro narra alguns desses desapontamentos com o partido, como  a falta de apoio aos seus projetos de lei. Um deles finalmente emplacou com a ajuda do deputado Luís Eduardo Magalhães e virou lei. A Lei 9.299/1996 determina que os crimes dolosos contra a vida praticados por PMs contra civis sejam julgados pela Justiça Comum (e não pela Justiça Militar). Sim, Bicudo não se conformava com a impunidade de policiais militares que matavam indiscriminadamente e, depois, julgados pela Justiça Militar (uma Justiça Especial) conseguiam a absolvição. O livro de memórias narra sua luta incansável pelos direitos humanos ao lado de Dom Paulo Evaristo Arns e tantos outros. Foi uma vida profícua que valeu a pena!