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domingo, 26 de abril de 2020

Meu velho centro


Há livros que são verdadeiros passeios. Você viaja, voa, percorre lugares sem sair do sofá. Meu velho centro: histórias do coração de São Paulo, Heródoto Barbeiro, São Paulo: Boitempo, 2009, 159 pág., é um desses. É um livro gostoso de ler. Trata-se, basicamente, de um roteiro sentimental da cidade de São Paulo. Um giro pela Sé, pela Praça João Mendes, pela Rua dos Estudantes, pela Praça da Bandeira, pelo Brás... tudo por meio do olhar de quem nasceu e cresceu na cidade, percorrendo suas vielas, esquinas e bairros desde menino.

Heródoto Barbeiro é um jornalista que trabalhou na rádio CBN e na TV Cultura. Nascido em 1946, foi office boy, mecânico, borracheiro e professor de inglês. Formado em História pela USP, foi professor de história contemporânea por 25 anos no Colégio Objetivo. Heródoto só foi cursar jornalismo após um convite para trabalhar na Rádio Jovem Pan, onde foi exigido que tivesse o diploma. Em 1991 participou da criação da rádio CBN.  Sua carreira na televisão começou na década de 70, na TV Gazeta. Na TV Cultura, onde esteve por 17 anos, foi apresentador de vários programas. Em 2011, deixou as citadas emissoras para trabalhar na Record News.

Pela leitura da obra acima, descobre-se que Heródoto é um espírito leve. E, pela sua biografia, um espírito inquieto e trabalhador. Meu irmão, que é um "workaholic" (trabalhador compulsivo), contava lá pelos idos dos anos 2000 que ia pra casa, depois do trabalho, ouvindo o Heródoto no rádio e, quando acordava, pulava da cama ouvindo o mesmo jornalista a dar notícias na CBN. O livro é melhor aproveitado por aqueles que conhecem o centro velho da cidade de São Paulo e adjacências e por aqueles que tem uma relação afetiva com a cidade. É próprio do ser humano desenvolver um amor pelo lugar onde fomos criados. Tem um capítulo sobre as igrejas do velho centro, inclusive igrejas que eu nunca havia ouvido falar, como a Igreja da paz e a Igreja de São Gonçalo.

Heródoto, que morou na Rua Nioac, ao lado da Rua Tabatinguera, sabe do que fala. Escrito por quem nasceu e cresceu na Baixada do Glicério, o livro é um entrelaçamento da história da cidade com a biografia do autor e, por tabela, um passeio pelas histórias de anônimos que conviveram com ele. Para mim, que só fui conhecer o centro velho nos anos 90, quando era estagiário de Direito, e tinha que percorrer os fóruns e repartições publicas da capital, é uma delícia ler os relatos de como era a cidade nos anos 50 e 60. A São Paulo do bonde, da pressa, do trabalho incessante, dos cortiços, dos galinheiros... Isso mesmo! O livro conta que havia galinheiros na Rua 25 de Março. E era comum, nos anos 60, ver transeuntes com uma penosa de baixo do braço ou com a cabeça da galinha pra fora, dentro de numa sacola, em um ônibus da CMTC. 

Apesar do caráter saudosista, Heródoto não se furta à críticas de equívocos das anteriores administrações da municipalidade, como a determinação da Prefeitura de acabar com os bondes, tendo em vista o consenso que se formou na época, segundo o qual os bondes "representavam o atraso e impediam o progresso".  O autor, que certa vez foi à Berna, na Suíça, conta que por lá sempre pegava bonde. E questiona: "Como podem existir bondes em um país de primeiro mundo, se o bonde é sinônimo de atraso? Ou será que manipularam a opinião do paulistano para que eles fossem trocados por ônibus, fabricados pelas recém-estabelecidas multinacionais no ABC?".   

Há um capítulo delicioso com os "tipos inesquecíveis", como a Dona Juventina (que vivia na janela e sabia da vida de todo mundo) e seu irmão Felipe, um tipo franzino, professor de piano, e que quase nunca saía de casa. Ou o velho Manuel Raimundo, o primeiro espírita que Heródoto conheceu, descendente de escravos e que "jamais foi visto sem terno e chapéu de feltro". Esses e outros relatos levou Danilo Santos de Miranda a escrever, na orelha do livro, que sob as sucessivas camadas de cimento e concreto usadas para a construção da cidade, remanesce a memória afetiva dos paulistanos, sendo que o fio condutor que percorre todo o livro é o do sentimento.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Os meninos da rua Paulo

Há livros que se pode ler e reler em qualquer idade. É o caso de Os meninos da rua Paulo, Ferenc Molnár, Cosac Naify, 263 pág. O livro foi escrito pelo húngaro Ferenc Molnár em 1907 e retrata as brincadeiras de um grupo de meninos em Budapeste. Em processo de modernização e industrialização, a capital da Hungria vivia um tempo de mudanças em que antigos terrenos baldios começavam a dar lugar a prédios e indústrias. O autor consegue captar o espírito da época ao narrar as aulas de latim, de ciências, a rigidez dos professores, bem como a necessidade dos meninos de ganhar as ruas depois do almoço para simularem um exército, brincarem de soldado e jogarem péla (espécie de jogo que lembra o tênis). 

Trata-se de uma pequena obra prima que continua a encantar gerações de leitores. Publicado no Brasil pela primeira vez em 1952, tornou-se um clássico da literatura infanto-juvenil. Escrito num tempo em que havia muitas guerras, o enredo espelha o espírito beligerante da época e conta com um final pungente. A saborosa edição do livro, na fotografia ao lado, é da saudosa editora Cosac Naify (que fechou as portas em 2015 devido à crise econômica brasileira), com tradução e prefácio de Paulo Ronái, revisão de Aurélio Buarque de Holanda e ilustrações de Tibor Gergely. Fica claro que o livro foi escrito por alguém que viveu aquelas aventuras no grund em Budapeste. É preciso sensibilidade para olhar para trás e contar as aventuras de um grupo de meninos que reproduziam, em pequena escala, o mundo dos adultos. Bem por isso, Paulo Ronái nos conta que a história "foi relatada por um dos seus participantes, ainda bastante perto da mocidade para levá-la a sério, já bastante longe para dela sentir saudades".

Para finalizar, melhor citarmos um trecho do irretocável prefácio: "Não cabe resumir aqui os episódios da história, divertidos ou patéticos, nem a descrição da batalha final, palpitante e dramática; nem retratar as personagens, o grave Boka, o temível Chico Áts, o ambíguo Geréb, o franzino Nemecsek, único soldado raso, que se revela nos últimos capítulos. Deixemos o leitor descobri-los, um por um, conhecê-los de perto, familiarizar-se com eles para nunca mais esquecê-los. Pois os meninos da rua Paulo é dessas leituras que nos acompanham pela vida a fora, livro de aventuras que vale por um estudo de psicologia, livro de memórias em que não se percebe a presença do autor, livro de guerra que nos reconcilia com a humanidade".