Translate

domingo, 31 de agosto de 2014

Menino chorando na noite

"Na noite lenta e morna, morta noite sem ruído, um menino chora.

O choro atrás da parede, a luz atrás da vidraça
perdem-se na sombra dos passos abafados das vozes extenuadas.
E no entanto se ouve até o rumor da gota de remédio caindo na colher.

Um menino chora na noite, atrás da parede, atrás da rua,
longe um menino chora, em outra cidade talvez,
talvez em outro mundo.

E vejo a mão que levanta a colher, enquanto a outra sustenta a cabeça

e vejo o fio oleoso que escorre pelo queixo do menino,
escorre pela rua, escorre pela cidade (um fio apenas).
E não há ninguém mais no mundo a não ser esse menino chorando."
                                                                         (Carlos Drummond de Andrade)

terça-feira, 19 de agosto de 2014

A vida real

A vida real é sempre mais difícil do que a vida sonhada, esperada, ansiada... A vida real é pé no chão, enquanto a outra é sonho, fantasia... e o que é pior, gera ansiedade. A vida real é hoje, agora, na sua mente, corpo, alma, ego. Epa! cuidado com esse... A vida real é família, trabalho, esforço, cotidiano, relacionamentos... enquanto a vida sonhada, romântica, é o que você gostaria que acontecesse... É um mar de rosas fabricado mentalmente... A vida real é o dia-a-dia, o oficial de justiça batendo na porta da tua casa, problemas pra resolver, doenças na família, discussões nos edifícios...   Mas também são aqueles momentos mágicos de prazer que passamos com as pessoas que amamos. É uma música que se ouve e se emociona... é aquela chama que te ilumina quando você aprende e entende algo então impensável... é uma conversa com um amigo do peito no butiquim... É aquele momento inesquecível que você passou com a pessoa que ama ou amou... Os românticos e sonhadores devem se proteger para não se machucarem muito perante a vida real, pois esta, muitas vezes, como toda vida real de um ser vivente, pode ser dura, fria, implacável; não fica jogando confetes nem nos agradando a maior parte do tempo; pelo contrário, na maior parte do tempo são silêncios, às vezes contas à pagar, às vezes uma pancada na cabeça, uma rasteira, uma falta de educação de quem quer que seja, um não de alguém que você convida pra sair, problemas no trabalho, um fora da namorada, pais que brigam, mortes na família, irmãos distantes emocionalmente, desencontros, decepções, frustrações, dores... Mas também, às vezes, alegrias, samba, risadas, boemia, conversas, um pôr-de-sol, descobertas, um livro que se descobre, encontros entre amigos, música, rituais, um novo amor... magia... E assim vai caminhando a vida... A vida real! Não a que gostaríamos que fosse como sonhamos, pois esta só existe no plano ideal, na idealização... nunca será atingida... É melhor, desde já, descartá-la... Isso não significa desistir dos seus sonhos. O que eu quero dizer é: ACEITE A VIDA REAL: as dores e as alegrias, MAS NÃO IDEALIZE! Se você deixar de idealizar já é um grande passo. Não idealize a mulher amada, o trabalho perfeito, o marido perfeito etc., porque senão, fatalmente, você vai se frustrar, porque tudo isso não existe; é fruto da sua mente! Mas quão difícil é, no meio da paixão, deixar de idealizar ?! Reconheço... Nascemos, vivemos e iremos morrer. Essa é a realidade! E a vida passa rápido! Portanto viva da melhor maneira que conseguir! E aceite a realidade como ela é! Mas uma das coisas mais difíceis da vida é aceitar a realidade...e prosseguir... Façamo-los!

sábado, 16 de agosto de 2014

Banquete das três jovens de Bagdá

"Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que um morador da cidade de Bagdá era solteiro e exercia a profissão de carregador. Certo dia, estando parado no mercado, encostado ao seu cesto de carga, passou por ele uma mulher enrolada num manto de muselina com forro de seda, usando um lenço bordado a ouro; calçava botinas douradas presas com cordão esvoaçante e polainas de laços também esvoaçantes. Ela parou diante dele, puxou o véu, debaixo do qual apareceram olhos negros, franjas e pálpebras longas com cílios cuidadosamente alongados (...). A jovem disse, com palavras suaves e tom sedutor: "Pegue o seu cesto e me siga, carregador". Ao ouvir tais palavras, ele mal pôde se conter e, tomando o baú, acorreu e disse: "Que dia de felicidade! Que dia de ventura!", e seguiu atrás dela, que caminhou à sua frente até se deter diante de uma casa em cuja porta bateu. Apresentou-se então um velho cristão a quem ela deu um dinar, dele recebendo um jarro verde-oliva de vinho. (...) Parou na loja de um verdureiro, do qual comprou maçã verde, marmelo turco, pêssego de Hebron, maçã moscatel, jasmim alepino, nenúfar damasceno, pepino pequeno e fino, limão de viagem, laranja real, mirta, manjericão, alfena, camomila, goivo, açucena, lírio, papoula, crisântemo, matricária, narciso e flor de romãzeira. Colocou tudo na cesta do carregador, que continuou a segui-la." A jovem foi ao açougueiro e comprou dez arráteis de boa carne de carneiro e carvão. Foram ao quitandeiro e a jovem comprou "um conjunto completo de condimentos que continha aperitivos defumados, azeitona curtida, azeitona descaroçada, estragão, coalhada seca, queijo sírio e picles adocicado. Saindo do quitandeiro, a jovem foi até o vendedor de frutas secas e comprou pistache descascado para usar como aperitivo, passas alepinas, amêndoas descascadas, cana-de-açúcar iraquiana, figos prensados de Baalbeck, avelãs descascadas e grão-de-bico assado. (...) "depositando-os na cesta do carregador, para quem se voltou dizendo: "Pegue a sua cesta e me siga", e ele levantou a cesta e caminhou atrás da jovem, até que ela se deteve diante do doceiro, de quem comprou uma bandeja cheia com tudo o que ele tinha: doces e pães ao modo armênio e cairota, pastéis almiscarados com recheio doce, bolos e confeitos como mãe-de-salih, doce turco, bocados-para-roer, geleia de sésamo, bolos-de-Alma'num, pentes-de-âmbar, dedos-de-alfenim, pão-das-viúvas, bolinhos de chuva, bocaditos-do-juiz, coma-e-agradeça, tubinhos-dos-elegantes e quiosquezinhos-da-paixão. Ajeitou todas essas espécies de guloseima na bandeja e colocou-a no cesto. O carregador lhe disse: "Ai, minha senhora, se você tivesse me avisado eu traria comigo um pangaré ou camelo para carregar comigo toda essa compra", e ela sorriu. Avançando um pouco mais, deteve-se diante do droguista e comprou dez frascos de essência de açafrão, igual quantidade de essência de nenúfar e duas medidas de açúcar; também pegou extrato de água de rosa perfumada, almíscar, noz-moscada, incenso, pedras de âmbar, castiçais para vela e outro tanto de archotes; enfiou tudo no cesto, virou-se para o rapaz e disse: "Erga o cesto e me siga carregador", e ele ergueu. A moça caminhou à sua frente até chegar a uma casa elegante dotada de um vestíbulo espaçoso, construção elevada, alicerces firmes, porta composta de duas lâminas de marfim cravejado de ouro cintilante. A moça se deteve diante da porta e bateu com delicadeza.
E a aurora alcançou Sahrazad, que parou de falar."
 
(28ª noite das 1001 noites - Volume I - ramo sírio; traduzido diretamente do árabe por Mamede Mustafa Jarouche; Biblioteca Azul)
 
 
 

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Preciso me encontrar




Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar

Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver

Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar

Se alguém por mim perguntar
Diga que eu só vou voltar
Depois que me encontrar

Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver

Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
                           (Candeia)

domingo, 3 de agosto de 2014

A vida só tem sentido se for compartilhada...

A alegria genuína é difícil de aparecer, dar as caras, surgir, mas ela existe! Nem que que seja por um dia, algumas horas, alguns minutos... ou segundos... O que é a felicidade ? São momentos... Ninguém é feliz o tempo inteiro... nem triste, nem romântico, nem cético... Aliás, que tédio seria, não!? A vida é muito mais que isso, meu amigo... E é preciso encontrar-se consigo mesmo, sentir-se, sentir os pés no chão, os 5 sentidos, estar bem só... para poder desfrutar do que existe e poder compartilhar com os outros... A vida só tem sentido se for compartilhada... Senão, é pura quimera de um sonho egoísta... Dia 9 de agosto, os "Inimigos do Batente" completarão 10 anos de existência, amor, samba, alegria, generosidade, simpatia, cumplicidade e magia... E, lógico, a comemoração será no já mítico "Ó do Borogodó": Fernando, Paulinho, Railídia, Cebola, Helinho e Cia Ltda. Tudo muito simples e natural. Depois de ver pontos histórico-afetivos da nossa querida cidade de São Paulo desfalecer, desmoronar, ruir, implodir ante a fome da especulação imobiliária... falo de tantos cinemas de rua que já fecharam as portas... do bar do Cidão, do centro de convivência do Antônio Nóbrega etc... E, invariavelmente, é sempre para dar lugar a um prédio comercial ou residencial insonso, incolor, inodoro e insípido... "Você praça, acho graça! Você prédio, acho tédio". E é bom e necessário resistir... Ando nas ruas e leio os grafites:"Mais amor por favor". Estamos precisando... de menos cimento e de mais afeto... menos shoppings e mais espaços abertos... menos hipocrisia e mais verdade... menos encontros virtuais e mais reais... menos exclusivismo e mais democracia... E o samba... pois é... o samba ainda insiste, e resiste.