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domingo, 17 de janeiro de 2021

Um perfil inspirador

É revelador dos bastidores do poder uma autobiografia de um presidente dos EUA, principalmente se notarmos que há sinceridade no relato, correspondência entre o que se pensa e o que se escreve. A sinceridade esta presente ao longo de todo o texto, informando ao leitor como é a visão de mundo do autor, que prefere escrever à mão do que no computador. Entra-se dentro da Casa Branca e dentro da rotina, da cabeça e dos desafios enfrentados pelo 44º presidente dos EUA. No livro Uma terra prometida; Barack Obama; 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 751 pag. Obama admite que gostaria de ter escrito um livro mais enxuto, talvez com 500 páginas, mas não conseguiu por causa de sua personalidade minuciosa e por gostar de contextualizar as decisões que tomou ao longo da vida, principalmente na fase em que era o presidente eleito. 

Quem estiver esperando detalhes sobre a vida de Obama, incluindo sua infância e adolescência, irá se decepcionar. É um livro de memórias presidenciais. Mas há pistas de como era o jovem Obama, introspectivo, interessado por livros desde pequeno e que, a partir dos 18 anos, começou a se fazer questionamentos sobre a vida, a economia e a política. Fica-se sabendo que estudou no Occidental College e depois na Universidade de Columbia, em Nova York e na Harvard Law School. Há relatos sobre os pais, a avó, o Havaí, Michelle Robinson, os anos em Chicago... Nota-se, pela leitura, que se trata de uma pessoa profundamente idealista; logo cedo interessado pelos movimentos sociais e pela luta dos direitos civis, com um grande interesse pelas sufragistas, e figuras como Gandhi, Lech Walesa e John Lewis. 

A autobiografia é mais focada na vida política de Obama, primeiro como senador estadual em Illinois e os bastidores da política local, depois como senador federal e a luta para não se deixar ser tragado pelo comodismo, pelo sistema político e pelo conforto do cargo. Finalmente, o livro trata dos anos na presidência dos EUA. Essa é a melhor parte, pois na minha visão, Obama perde muito tempo contando os bastidores da campanha à presidência, principalmente as primárias com sua adversária de partido, quando é travada uma desgastante disputa com Hillary Clinton. 

Obama realizou trabalho comunitário e, logo no início da vida política, distribuiu panfletos e bateu de porta em porta, aprendendo a ouvir as pessoas e os que elas realmente queriam: emprego, plano de saúde, conseguir pagar a hipoteca, a universidade para os filhos e melhores oportunidades. Desse modo, ele se aproximou da vida real e dos problemas concretos da comunidade em que vivia. Esse pé na realidade sempre o favoreceu a ter uma comunicação mais assertiva com o eleitorado. Mas os desafios que enfrentou logo ao chegar à presidência eram colossais: resolver a crise financeira de 2008, oriunda do mercado de crédito das hipotecas, colocar um fim gradual a duas guerras (Iraque e Afeganistão) e implantar um sistema público de saúde americano. 

Obama tentou, em vão, obter apoio de parcela do Partido Republicado para dar conta das reformas. O que se viu, porém, foi a tentativa fracassada de obter o apoio dos republicanos, que tinha um líder osso duro de roer chamado Mitch McConnell. A certa altura do livro, chega-se a conclusão que, se por um lado a política é a chave para a mudança, por outro, tem também muita sujeira e intrigas. A pessoa que quiser entrar para a política tem que ter estômago. Obama conta que a polarização entre democratas e republicanos era bem mais tênue no pós-guerra, nos anos 50 e 60 (quando se tinha um inimigo comum: a União Soviética), mas que, a partir dos anos 90, recrudesceu. E descreve, não sem uma ponta de mágoa, que o ressentimento acabou por definir o Partido Republicano atual.

O leitor fica sabendo, ainda que por cima, como funciona os bastidores do poder em Washington, os perfis dos líderes na Câmara e no Senado, como funcionam as votações, as obstruções etc.  Ao longo do relato, também é possível descobrir as pessoas que Obama admira como Abraham Lincoln, Teddy Roosevelt, Martin Luther King, Sonia Sotomayor, entre outros. 

O candidato que externava críticas à política externa de Washington, por muitas vezes agir militarmente antes de testar opções diplomáticas, teve que lidar, como presidente, com duas guerras: no Afeganistão e no Iraque. A política externa, aliás, ganha destaque no livro e são descritos os perfis de líderes de outras nações, em especial os de Nicolas Sarkozy, Angela Merkel, Vladimir Pútin e Benjamin Netanyahu. No fim das contas, o idealismo de Obama se sobressai.  Mesmo com todos os obstáculos, nota-se a tentativa de fazer a diferença, de construir um mundo melhor; a preocupação em proporcionar saúde, emprego e qualidade de vida ao maior número de americanos. O esforço em tentar unir as pessoas em torno de causas comuns, construir pontes. O objetivo de superar a divisão política nos EUA. A busca por "um coro e não por um solo". Tudo isso é inspirador!