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quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

A vida de São Francisco de Assis

A vida de São Francisco foi uma coisa extraordinária; uma luz num planeta escuro em uma época tenebrosa. Era a época das cruzadas. Francisco nasceu em 1182; era filho de Pedro Bernardone, um rico comerciante de Assis e de dona Pica, sua esposa. Nascido em berço de ouro, tinha tudo para seguir os passos do pai e ser um rico comerciante. Mas Deus o havia destinado a outro propósito. Francisco foi o arauto do Evangelho na Alta Idade Média. Quando jovem, Francisco era o rei das festas e cantorias de Assis. Sua alegria contagiava seus amigos e convivas. Ele era muito sociável, brincalhão, festeiro, generoso. Sua generosidade se estendia também ao pobres. Francisco não podia ver um mendigo sem se sentir culpado e ir atrás para dar um pão, uma comida, uma roupa ou um dinheiro; muitas vezes todo o dinheiro que carregava consigo. Francisco era tão alegre que, ao ajudar seu pai no estabelecimento comercial, iniciava conversas tão animadas e simpáticas, que cativava os fregueses e fazia-os comprar as mais caras mercadorias com um sorriso no rosto. Seu pai aprovava esse comportamento, mas não gostava muito dos arroubos de generosidade do seu filho. Todavia, contanto que Francisco continuasse trabalhando para ele, trazendo fregueses e vivendo a vida social tradicional de Assis, estava tudo bem. O problema é que a generosidade de Francisco para com os mendigos estava aumentando...

Até que um dia, Francisco teve uma doença grave e ficou de cama por várias semanas. Somente começou a se recuperar quando o sol entrava pela janela do seu quarto. Sentia o calor do Sol e isso revigorava suas forças. No dia seguinte, graças ao Sol, conseguiu ficar sentado na cama. No outro dia, conseguiu andar até a janela do quarto, de onde avistou a linda vista que tinha e até então não havia percebido em todos seus tons e cores. Viu os campos, os bosques, as estradas, os trabalhadores e ficou admirado. Depois, conseguiu sair de casa e andar um pouco pela rua, só não indo mais longe para não preocupar sua mãe. No dia seguinte, conseguiu andar até a porta da cidade. Adiante, transpôs o portal e foi andar pelos campos e montanhas nos arredores de Assis. Ali sentiu uma alegria indizível caminhando em meio à natureza, passeando pelos campos e pela montanhas. Jamais sentira uma prazer tão grande. Foi uma descoberta da felicidade diferente da que estava acostumado. 

Dentro de um curto prazo, Francisco recuperou a saúde e pôde retomar sua rotina anterior. Todavia, Francisco já não sentia mais tanto prazer nas festas e jantares, regados a vinho, com seus amigos. Ia com eles, bebia e cantava, mas aquelas festas não mais satisfazia a sua alma. Quando cantava as velhas canções, as melodias soavam vazias aos seus ouvidos. Ele preferia caminhar sozinho pelos campos e pelos bosques, vendo a natureza, sentia mais prazer nisso. Certo dia, Francisco preparou um banquete para seus amigos. Quando a festa e a cantoria chegaram no auge, todos saíram cantando animados pelas ruas. Francisco, porém, estava pensativo e taciturno, de modo que sentou em uma calçada e ficou a pensar e a olhar para o alto. Ninguém sentiu sua falta, a não ser um amigo, que voltou e o encontrou ali, sozinho. Tentou fazer pilhéria e perguntou: "Com o que está sonhando? Está pensando em casar?". Francisco olhou para ele por um instante em profundo silêncio e, para espanto do seu amigo e para seu próprio espanto, disse: "Tens razão. Tenciono casar-me, mas com uma mulher mais pura e mais amável do que jamais viste. Seu nome é dona Pobreza". A partir daí, Francisco vai se dedicar aos pobres e vai ter a dona Pobreza como companheira pelo resto da vida. Mas a ruptura total ainda não havia acontecido. 

Um dia, Francisco estava cavalgando pela estrada quando avistou um leproso. Naquele tempo, a lepra era uma coisa terrível, uma sentença de morte, todo mundo sabia disso e fugia dos leprosos como o diabo da cruz. Quando viu o leproso, Francisco meteu esporas no cavalo para fugir desse encontro. Mas algo dentro dele procurava esse encontro. Houve um conflito ali, no seu íntimo. "Entretanto, como se alguma outra mão houvesse tomado o controle da sua, continuou o caminho, diretamente na estrada por onde vinha o leproso". Agora já podia distinguir as terríveis deformidades do homem; podia ver seus lábios comidos e no lugar do nariz havia um buraco ulcerado. Ao chegar perto, Francisco saltou do cavalo e entregou ao leproso todo o dinheiro que tinha. A mão que pegou sua esmola era um tumor aberto. Francisco ficou com horror e medo, "mas... inclinou o rosto sobre a mão do leproso e beijo-a. Depois ergueu a vista. Não sentiu nem aversão nem medo". E uma sensação de felicidade sem tamanho inundou-o como jamais conhecera antes. Montou no cavalo e seguiu. Depois de alguns segundos, voltou  o rosto para trás para se despedir do leproso, mas a estrada estava deserta. O leproso tinha desaparecido. Esse acontecimento mudou para sempre a vida de Francisco. "De agora em diante nenhuma sensação de horror ou aversão separava-o da miséria da humanidade". 

A partir daí, Francisco começa a trabalhar como voluntário no lazareto, um leprosário longe da cidade, mas perto de Assis. Entrementes, continua a trabalhar para seu pai. Um dia, Francisco estava a rezar ajoelhado na igrejinha de São Damião, fora dos muros da cidade, profundamente absorvido na oração quando ouviu uma voz que saía do crucifixo: "Francisco, não vês que minha casa está em ruínas? Vai e restaura-a para mim". Francisco tomou a ordem ao pé da letra. Mas o dinheiro que tinha não era suficiente para restaurar a igrejinha de São Damião, que estava em ruínas. Então foi à loja do pai, subiu às prateleiras e retirou vários fardos de custosas fazendas para vender na feira. O padre da igreja ficou encantado, mas desconfiava que o rico comerciante aprovasse aquela ação. O filho ouvia vozes e o pai calculava o prejuízo. Na verdade, Pedro Bernardone ficou irado. A ação não autorizada do filho foi como um roubo; por isso, prendeu Francisco na adega de casa. Depois, como Francisco não dava sinais de arrependimento, mandou retirar toda a comida e deixar o filho só à pão e água. Dona Pica, como mãe amorosa, destrancou a porta e Francisco saiu. Quando Pedro Bernardone retornou, sua cólera transformou-se em fúria. Processou seu próprio filho. Resolveu levar seu filho às barras do tribunal para responder por seus atos. De fato, o pai prestou queixas contra o filho que foi julgado pelo tribunal eclesiástico. No dia marcado, Pedro Bernardone apresentou a acusação. Em seguida, foi a vez de Francisco. Falava de vozes que ouvira e de uma tarefa que o próprio Cristo lhe havia designado. O bispo colocou tudo na balança. Restituiu ao pai o dinheiro com a venda das fazendas, mas não viu culpa em Francisco. E disse: "Tu pretendes servir ao Senhor; mas sua causa não pode produzir frutos se os motivos não forem justos. O dinheiro que tiraste de teu pai não pode beneficiar a Igreja. Restitui-o ao seu legítimo dono". Francisco respondeu: "Senhor Bispo, não somente o dinheiro, mas tudo o que tenho dele, inclusive as roupas". Tirou fora seus trajes finos de linho e ficou só com uma camisa de fibra. Lançou suas roupas aos pés de seu pai, pôs o dinheiro em cima e gritou: "Escutai, vós. Até agora chamei Pedro Bernardone meu pai, mas agora desejo dizer 'padre nosso que estais no céu'". Ali Francisco exprimiu sua decisão de deixar seu pai celeste tomar o lugar de seu pai terrestre. 

Ao deixar a sala do tribunal, a não ser a camisa de fibra que vestia, Francisco nada mais possuía. Estava só e sem um tostão no bolso. E o povo de Assis prognosticava uma derrocada vergonhosa. Mas não foi isso o que aconteceu. Francisco confiara sua vida aos cuidados de Deus. Continuou a ajudar os leprosos do lazareto, a rezar fervorosamente, a fazer suas caminhadas diárias e à agradecer a Deus por tudo. Além disso, vestiu um surrado capote de camponês, com um capuz, abandonado na estrada, amarrou uma corda velha na cintura e começou a reconstruir a velha igreja. Como não tinha burro nem jumento, ele próprio carregava as pesadas pedras para a reconstrução da obra. Para comer, Francisco recorria à mendicância na cidade de Assis, mas muitos o hostilizavam, xingavam e o escorraçavam. Francisco dizia: "Obrigado pela humilhação". Outros, porém, mais tolerantes, lhe davam alguma coisa ou restos de comida. E assim ele ia vivendo. 

Francisco reconstruia a igreja, pedia comida e dormia ao relento. Quando o padre ofereceu dinheiro em troca da reconstrução da igreja, Francisco não aceitou. Quando Francisco ouviu a voz, ele já era um predestinado, mas sua mente ainda estava muito ligada às coisas mundanas, e ele tomou a ordem ao pé da letra e se pôs a reconstruir materialmente a igreja de São Damião. Em breve, Francisco compreenderá sua missão. Em 1209, depois de muito trabalho, Francisco termina o restauro da igreja. A inauguração não atraiu muita gente. Mas enquanto o padre estava celebrando a missa, Francisco finalmente entendeu que a voz lhe havia dito para reconstruir a Igreja de Cristo. Nessa missa, no dia de São Mateus, o padre leu do Evangelho segundo São Mateus, a palavra que Cristo dirigiu a seus apóstolos, quando os enviou ao mundo para proclamar o reino de Deus: "Eis que vos envio como ovelhas no meio de lobos". Então Francisco percebeu que a lição apostólica de pobreza, humildade e amor que o Senhor ordenara aos apóstolos, era exatamente aquilo que ele, Francisco, tinha sentido no seu coração e já vinha praticando há algum tempo. 

Um pouco depois, Francisco vai pregar o Evangelho em uma escadaria de Assis e todos os cidadãos o tomam como um mendigo louco. Zombaria e desprezo foram as reações que Francisco logrou depois de seu primeiro sermão. Mas Francisco não se abateu e continuou a fazer o que achava certo. O primeiro a compreender suas palavras foi Bernardo de Quintavalle, um rico comerciante que, depois do sermão, convidou Francisco para jantar na sua casa. Ficaram conversando a noite inteira e, já na manhã seguinte, o rico comerciante estava convertido. Logo depois, Francisco converteu outro seguidor, Pedro dei Cattani, que era, na verdade, o respeitado vigário da igreja de São Nicolau. A uma pergunta, Francisco respondeu: "O que os padres ensinam na igreja é a doutrina do Cristo, mas não o praticam em suas vidas. Prová-lo-ei com a Bíblia". E, como era de costume, abriram o Evangelho ao acaso, por três vezes. A primeira vez: "Se queres ser perfeito, vai vender tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro nos céus". A segunda, era a exortação de Jesus aos apóstolos quando saiam aos pares: "Não leveis nada convosco na vossa jornada, nem bolsa, nem pão, nem mesmo duas túnicas". A terceira vez: "Aquele que não toma a sua cruz e não me segue, não é digno de mim". Poucos dias depois, já com dois seguidores, o senhor Bernardo vendeu tudo o que tinha e os três foram distribuir a fortuna do colega aos pobres. E os três seguiam sempre juntos, ajudando os pobres, os doentes, os leprosos do lazareto, e continuavam a viver da caridade alheia. Em Assis, as opiniões se dividiram. Entre os ricos, os majores, os três eram doidos de pedra. Entre os pobres, os minores, os três eram esquisitos, mas boa gente, pois ajudavam os mais necessitados. De fato, para o povo simples que os ouvia, a doutrina de Cristo começou a tornar-se mais clara. Aqueles três esfarrapados eram diferentes dos padres da igreja, que também liam as palavras do Evangelho, mas viviam no conforto e na abundância e não abriam mão das vantagens pessoais e eclesiásticas. Também eram diferentes do monges dos claustros, que seguiam o mandamento da pobreza, mas suportavam-na como pesada carga, enquanto os três seguiam alegres a cantar pelas estradas de Assis. 

Uma história que se espalhou naquele tempo, conta que, um dia, após ter trabalhado de manhã até a noite no lazareto, achava-se Francisco sentado à beira da estrada lendo a Bíblia, único bem que os três possuíam, quando passou uma pobre mulher de regresso à casa. Estava aflita porque nada tinha que dar de comer aos seus filhos. Quando viu o homem à beira da estrada, na sua aflição, nem notou sua capa suja e esfarrapada. Dirigiu-se a ele e pediu-lhe uma moeda. Foi esta a primeira vez que Francisco lamentou não ter algum dinheiro. Nada possuía que não fosse a Bíblia. Era o seu tesouro. Servia para consolar e revigorar seu ânimo. Então Francisco disse: "Toma este livro. Vende-o e compra com o dinheiro pão para os teus filhos". Depois que a mulher se foi, Francisco se dirigiu a Deus explicando sua atitude e pedindo perdão. E então ouviu o Senhor que lhe respondia no íntimo: "Coloquei meu Evangelho vivo dentro do teu coração. Quem me ama e me segue vive a minha palavra". 

Depois disso, muitos outros seguidores se juntaram a Francisco e logo havia uma comunidade de franciscanos vivendo no telheiro de Rivo Torto. Foi por esse tempo que Francisco teve uma visão na caverna de Poggio Bustone, quando, depois de se arrepender pelo tempo desperdiçado na sua vida durante sua juventude, regada a bebedeiras e festas, retirou-se para uma sombria caverna. Era estreita e pequena, de modo que teve que se rastejar. Esfolado e coberto de sujeira, juntava as mãos e rezava, implorando a Deus que o perdoasse. Subitamente, suas mãos foram imersas em radiosa claridade. Ergueu a vista e viu a caverna cheia de luz. E uma voz disse: "Francisco, alegra-te, teus pecados estão perdoados. Escolhi-te para que possas proclamar o meu reino". E então viu centenas e milhares de irmãos caminharem para seu lado, como raios convergentes de todas as direções. 

Depois de um tempo vivendo em comunidade, Francisco sentiu uma urgência de formular o teor da vida evangélica em termos válidos para todos aqueles que optassem por seguir esse caminho do desapego aos bens materiais e do amor ao próximo. Pediu pergaminho, tinta e pena e traduziu em regras e preceitos a vida simples em comunidade que ele seus seguidores experimentavam. Com o papel em mãos, ele e seus companheiros partiram para Roma em busca de uma audiência com o papa Inocêncio III. Depois de ser ignorado por seu aspecto de mendigo, mas graças à intercessão do cardeal João de São Paulo, Francisco finalmente foi recebido pelo papa, um sábio teólogo. Depois de ouvir os preceitos do pobre mendigo, o papa disse que aquela forma de vida era muito austera, sendo difícil de ser seguida; ao que Francisco respondeu que confiava em Jesus Cristo que, tendo prometido a vida eterna e a felicidade celeste, certamente não negaria coisa tão mesquinha como o alimento para viverem. O papa ficou admirado e, depois de consultar os cardeais, falou a Francisco que, se ele queria seguir Jesus, o melhor seria ele e seus seguidores entrarem para uma das diversas ordens monásticas que havia na época, onde viviam os monges nos claustros, cada um em sua cela, em oração diária, sendo acolhidos e sustentados pela santa madre Igreja. No mosteiro, cada qual tinha sua cela, sua cama, refeições frugais mas regulares e somente esta independência econômica e esta segurança o emancipavam das garras do egotismo. Melhor assim do que ficarem soltos no mundo, como aventureiros, vagabundos ou tarefeiros, sujeitos às tentações mundanas. 

Ao que Francisco respondeu: "Caro papa Inocêncio, não temos medo do mundo e dos homens. Em qualquer parte onde estejamos, ou para onde formos, poderemos sempre ter nossa cela conosco. Pois o irmão Corpo é nossa cela, e nossa alma é eremita que fica lá dentro rezando a Deus. Se a alma não fica quieta dentro do corpo, pouco aproveita o piedoso uma cela feita pelo trabalho de suas mãos". Os cardeais ficaram irritados, mas o cardeal João de São Paulo interveio e o papa adiou o veredicto para o dia seguinte. Nessa noite o papa teve um sonho revelador e Francisco também, de modo que no dia seguinte, depois de Francisco contar uma parábola, o papa se curvou diante de Francisco e o abençoou, autorizando-o a pregar por toda parte.

(Resumo do livro Os santos que abalaram o mundo; René Fülöp-Miller; tradução de Oscar Mendes. - 31ª ed.. - Rio de Janeiro: José Olympio, 2023)

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

A fé de Maria do Rosário

Trecho do livro "Veia bailarina", de Ignácio de Loyola Brandão. São Paulo: Global, 1997.

"Sofria por antecipação. Característica que herdei de minha mãe. A vida para ela foi difícil, viveu crispada, os nervos à flor da pele. Lutava momento a momento, jamais relaxava. Tinha medo de perder o que ela e meu pai conseguiram em anos de trabalho. Meu pai, Antônio, filho de um seleiro e carpinteiro, fez carreira em ferrovia, chegou a dirigir o escritório central da Estrada de Ferro Araraquara. Crescido, eu me orgulhava de ver, em todas as estações e escritórios, o nome de meu pai nos comunicados, que impunham ordens e regulamentos. Minha mãe, Maria do Rosário, era filha de um homem inquieto, que teve todos os tipos de emprego, adorava política e discursos, era fanático pelo Partido Social Democrático, aposentou-se pobre como porteiro de grupo escolar. (...) Antônio e Maria casaram-se, criaram filhos compraram casa. Ao deixar a ferrovia, ele montou uma indústria de sacos de papel, comprou um carro aos 60 anos, aprendeu a guiar mal, desistiu (será por isso que não dirijo?), economizou um pouco de dinheiro, ergueu casas para meus dois irmãos. Totó e Maria representaram uma época, um momento da história do Brasil em que havia possibilidades de ascensão para os que vinham de classes baixas. 

O que construíram não parecia muito, olhado de fora. No entanto, foi bastante grande para a mulher que cresceu com pouca instrução e aos 13 anos se viu sem mãe, a cuidar dos irmãos. O que a salvou foi a fé, à qual se agarrou como a última tábua num oceano. Fé que conservou até o final e a levou a morrer em paz, certa de ter vivido honesta e decentemente. Tão honesta que chegava às raias do radicalismo quando se tratava das coisas de Deus e da igreja, moral e valores. 

(...) 

Quando vim para São Paulo, contra sua vontade, ela me queria no Banco do Brasil ou na estrada de ferro, recomendou: "Pois bem, vá! Te entrego a São José". Obtive meu primeiro emprego, no jornal Última Hora, no dia 19 de março. Dia de São José, para quem não conhece o calendário. Herdei dela o sentido trágico e uma certa mania de perseguição. Via conspirações aqui e ali, numa crítica, numa ausência de notícia, no fato de meu livro não estar na lista de mais vendidos, na platéia semivazia em uma palestra. Pequenos fatos, pura besteira! Que importância tem tudo isso? O que acrescenta, modifica?

Anos e anos ouvi as conversas dos dois, pai e mãe, à noite. Sussurros, crianças não tinham nada que ver com a vida, as dificuldades. "Nunca te promovem, está sempre alguém na frente, esse Fernando Vicente te deixa para trás todas as vezes", protestava ela. Fernando Vicente era um todopoderoso, a imagem que trouxe dele, sem jamais conhecê-lo, era a de um totalitário perverso que ignorava meu pai. O homem morava em frente ao jardim, numa casa que parecia um pequeno castelo. Ali se ergue agora a igreja dos mórmons. 

Minha mãe falava como se meu pai fosse o culpado, enquanto outros, apaniguados, iam subindo e ocupando cargos que deveriam ser dele por mérito e tempo de serviço. Por ser extremamente responsável, fazer horas e horas extras não pagas, calcular todas as tarifas com extrema precisão. Homem que jamais faltou ao trabalho, eu o via sair em manhãs de tempestade com guarda-chuva e galocha preta, chapéu (homens de respeito usavam chapéu), pontual, devotado à Estrada de Ferro, sua vida, sua paixão. E minha mãe, indignada contra os diretores politiqueiros que não reconheciam o talento e o esforço de meu pai para as estatísticas, o suor que ele deixava nas mesas da contadoria. Voltava-se contra ele por não protestar, gritar, exigir, sem perceber, inocente que era das coisas políticas, a engrenagem fascistóide da ferrovia, pequenos mussolinis circulavam pelo prédio da Rua Gonçalves Dias, pela estação, por toda parte. (...) 

Temerosa a cada novo passo de meu pai, Maria do Rosário viveu apavorada com a possibilidade de tomarem nossa casa, hipotecada por décadas. Um fantasma. "Ainda vamos perder a casa", ouvi a infância inteira. E talvez por isso, cinquenta anos depois, sonho com meus apartamentos inundados, devastados, demolidos e vazios. Perco as chaves, não encontro minha casa, não sei onde ela está. Percebo agora como o episódio de Zero em que Rosa não encontra a sua casa no imenso conjunto habitacional, onde todas as moradias são absolutamente iguais e anódinas, tem um sentido. 

Há muita coisa inexplicada. Milagres talvez possam acontecer. Minha mãe acreditava neles e em graças, favores concedidos. Sua fé nas forças irradiadas por São José, Santa Rita de Cássia, Coração de Jesus, Nossa Senhora de Lourdes era sem tamanho. Uma de suas canções favoritas, ao lavar roupa, segunda-feira, era:

O anjo descendo

num raio de luz,

feliz Bernardete, 

à fonte conduz. 

Ave, ave, ave Maria!

Bernardete era Bernardette Soubirous, a camponesa semi-analfabeta que viu Nossa Senhora, em Lourdes, França, 1858".

domingo, 15 de outubro de 2023

Seca histórica e fumaça em Manaus e no Rio Negro


De longe parece neblina, mas é fumaça. Os olhos ficam irritados, a garganta seca e começa-se a tossir. Não se enxerga o horizonte. (Que triste metáfora...) Há centenas de focos de incêndio na floresta amazônica. Parece filme de ficção, mas é a realidade. Uma espessa fumaça cobriu Manaus e grande parte do estado do Amazonas. A fumaça é resultante de queimadas.  Como não há fiscalização suficiente, a população sofre e os hospitais ficam cheios. O governo estadual e federal demoram a tomar providências. Há um total descaso com a população manauara.

Manaus é uma sauna úmida. Mas agora virou uma sauna seca. O termômetro chega a 40ºC facilmente. Quem não está acostumado, passa mal. A sensação térmica, porém, é mais alta, seja no tempo de chuva (primeiro semestre) ou seca (segundo semestre). Até aí tudo bem, desde que se repetisse os ciclos de secas e chuvas regularmente em um planeta saudável. Mas não é o caso. Com as mudanças climáticas, tudo está mudando rapidamente. A seca e o calor estão mais intensos! Para piorar, tem gente que põe fogo na mata de forma deliberada. Com a fumaça na capital Manaus, a vida ficou mais difícil. Na verdade, a situação ficou fora de controle e as autoridades demoraram para agir. O cheiro da fumaça fica impregnado nas roupas, nas casas e no nariz. As aulas da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) chegaram a ser suspensas.
 
A Amazônia sofreu este ano de 2023 a maior seca da sua história (pior que a seca de 2010), já sendo considerada a pior dos últimos 100 anos. Alguns rios baixaram 14 metros do seu volume; os jornais noticiaram a mortandade de botos e peixes devido à água muito quente dos rios e afluentes (por volta de 40º C em alguns pontos). A seca deste ano foi causada pelas mudanças climáticas e pelo El Nino (fenômeno climático causado pelo aquecimento das águas do Oceano Pacífico), que impacta o Brasil de diferentes formas. Na Amazônia, o El Nino provoca uma seca mais prolongada e pronunciada.

Uma coisa é a seca histórica, que causa enormes prejuízos econômicos e sociais para o estado do Amazonas. Outra coisa são as queimadas e a fumaça delas resultante, que cobriram Manaus, o Rio Negro e adjacências. O desmatamento desenfreado dos últimos anos, aliado à seca extrema, deixou a floresta mais frágil e suscetível a incêndios. A população está sofrendo doenças respiratórias gravíssimas. Além disso, a fumaça prejudica o trabalho, o comércio, as escolas, o turismo, tudo enfim. Por incrível que pareça, nesse mês de outubro de 23, a qualidade do ar está pior em Manaus do que em São Paulo.

Durante nossa estadia, saíamos de máscara para visitar os pontos turísticos. Lemos nos jornais que Manaus registrou a segunda pior qualidade do ar do mundo, em outubro de 2023. Mas como isso aconteceu? Em decorrência das queimadas legais e ilegais. A tripulação do navio nos contou que essa fumaça vinha das queimadas feitas por pequenos produtores à guisa de preparar a terra para o plantio. Mas era somente isso, pois é muita fumaça. Então, conversando e pesquisando sobre o assunto, descobrimos que o fogo salta e se espalha para áreas maiores. Descobrimos que muitos incêndios criminosos também ocorreram. É sempre assim. No Brasil não faltam os aproveitadores. 

Numa sociedade capitalista como a que estamos inseridos, muitas vezes as notícias sobre a seca surgem não pelos efeitos maléficos que geram nas pessoas, mas pelos efeitos que causam sobre a economia. A lógica do mercado não tem coração. O estado do Amazonas, apesar da exuberância da floresta, sempre foi um estado economicamente pobre se comparado a outros estados da federação. Ficou conhecido e surgiu para o Brasil e o mundo no ciclo da borracha (1890-1920). Terminado o ciclo, porém, o estado passou a viver basicamente da pesca e do turismo. O que fazer? Como incrementar a economia do estado do Amazonas? 

O Poder Público criou a Zona Franca de Manaus, que é essencial para a economia do estado, atraindo fábricas a um custo de produção mais baixo, graças a incentivos fiscais. Em Manaus, por exemplo, encontram-se sediadas as fábricas de motos da Honda e da Yamaha. Pois é... Atualmente, porém, a seca histórica no Amazonas ameaça parar fábricas do polo industrial de Manaus, onde está concentrada a produção nacional de eletrodomésticos, aparelhos eletrônicos e motocicletas. As condições do transporte de cargas pelo rio Amazonas e seus afluentes pioraram drasticamente nos últimos dias, provocando atrasos na entrega de materiais, assim como um acúmulo de produtos acabados nos estoques das fábricas.  As maiores embarcações não conseguem mais acessar o porto de Manaus devido à redução do nível de água em trechos críticos para abaixo da profundidade mínima necessária para a passagem com segurança dos navios de grande calado. Buscam-se alternativas que aumentam o custo do transporte. No final, todo mundo paga a conta. 

Por outro lado, até a Zona Franca de Manaus é polêmica e discutível, pois levam-se os insumos todos para a região de Manaus, lá se montam as geladeiras, celulares, eletrodomésticos e motocicletas nas fábricas e depois tem que distribuir essas mercadorias para todo o Brasil, principalmente para o Sudeste. Isso tem um altíssimo custo. A logística não faz sentido. É uma coisa burra! Deveriam inventar um outro jeito de alavancar a economia do estado do Amazonas. A Floresta em pé e a pesquisa científica dariam maior rentabilidade ao estado e seria economicamente sustentável. Preservar a floresta e atrair pesquisa e turismo do mundo inteiro seria muito melhor do que queimar a floresta para criar pasto para o gado. Estamos fazendo tudo errado. Segundo o pesquisador Carlos Nobre, o desmatamento está avançando tão rapidamente, que estamos chegando perto do ponto de não retorno, isto é, a um ponto em que, depois de derrubada grande parte da floresta, não dará mais para recuperar a área degradada e reflorestar, pois o solo amazônico é arenoso. A Amazônia corre o risco de virar uma savana. 

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Federer

Tênis é um jogo mental. Embora o esporte demande força no punho, resistência para longos ralys, agilidade nos pés e flexibilidade para alcançar bolas bem colocadas, para ser um top 10 da ATP, o tênis exige, sobretudo, controle mental. Isso foi o que me atraiu no Roger Federer: sua frieza nas partidas  de grand slam, sua concentração nos pontos decisivos e sua capacidade de se recuperar de um game ou set perdidos. Mas nem sempre foi assim... No livro Federer: o homem que mudou o esporte/Christopher Clarey; tradução Cássia Zanon...[et al.] - 1.ed - Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021, o autor nos conta que o jovem Federer era um rapaz nervoso, irrequieto e explosivo; desses que escutava música alta de péssima qualidade e quebrava a raquete quando perdia. Acredite se quiser.

Mas não é só o controle emocional que faz com que Federer seja o tenista mais querido no Brasil e em outros países. É que, além da diplomacia, da elegância e da capacidade de não se meter em confusões, ele tem uma vulnerabilidade que é perceptível aos olhos do público. Ele não é tão forte e musculoso como Nadal, nem tão elástico e flexível como Djokovic, mas ele tem um carisma que a todos encanta. Federer aprendeu, com o tempo, a ser humilde; aprendeu a vencer e a perder. Ele aprendeu que o resultado nem sempre é justo, e isso é do jogo. Ele sabe vencer sem tripudiar sobre o adversário e perder sem ficar chorando ou culpando os outros ou a si mesmo. 

Outro fator determinante para atrair o gosto do público é o fato de Federer ter uma inteligência social incrível. Ele não só gosta de conversar com as pessoas, como ele se interessa e faz perguntas, seja conversando com o pegador de bolas em Wimblendon, seja com os jornalistas ou os tenistas vencedores mais velhos, como Borg. Ele é gentil com todos. É poliglota, atende aos repórteres, dá autógrafos, brinca com os boleiros e com as pessoas ao redor. Os amigos entregam que Roger tem uma personalidade de brincalhão. Mesmo adulto, ele gosta de pregar peças em seus amigos para dar risada. Essa leveza e espontaneidade é algo raro num ambiente tão competitivo. Ao contrário de outros tenistas, que buscam o isolamento para se concentrarem, Federer se alimenta do contato social. Ele é um ser gregário e gosta de interações sociais, de modo que conversas o deixam relaxado.

O livro tem o mérito de mostrar mais ou menos como foi a adolescência de Federer, quando os pais o deixaram escolher o esporte que queria seguir na vida. Roger adorava jogar futebol (assim como Nadal), mas escolheu o tênis por ser um esporte em que o sucesso ou o fracasso somente dependeria dele, de ninguém mais. O biógrafo também conta algumas histórias que apontam para a personalidade do biografado. Como esta: "Federer enfrentou ceticismo quase imediatamente após sua decisão de deixar a escola. Quando visitou seu dentista na Basileia, a conversa começou, como muitas conversas com dentistas começam, no meio de uma limpeza. 'Ele estava mexendo na minha boca e falando': 'O que você vai fazer agora ?' E eu respondi: 'Vou jogar tênis', lembrou Federer. E ele: 'Certo, e o que mais?' E eu: 'Só isso'. Então ele olhou para mim e disse: 'Só isso!? Só tênis!?'". Federer mudou de dentista. "Nunca mais voltei, porque senti que ele não estava entendendo o que eu queria fazer", disse-me Federer. "Eu estava perseguindo um sonho. Estava tentando mirar nas estrelas, e ele ficava me puxando de volta. E sabe de uma coisa? Não quero me cercar de gente assim".

Duas décadas depois desse episódio, os números de Federer são impressionantes: 103 títulos; 20 títulos de grand slam, tendo sido 8 vezes campeão de Wimblendon. 237 semanas seguidas em 1º lugar no ranking. O livro também retrata as rivalidades: Federer x Lleyton Hewit (seu primeiro grande rival); Federer x Nadal (o homem mais intenso no tênis) e Federer x Djokovic (o homem mais elástico do tênis). Aliás, há um capítulo inteiro sobre Rafael Nadal. Nesse passo, o jogo suave de Federer permitiu uma longa carreira sem muitas lesões, já o jogo intenso e bruto de Nadal lhe deixou muitas lesões, ocasionando hiatos em sua carreira. Mas é a rivalidade que o público mais lembra: Federer x Nadal, sendo que o ápice do duelo entre os dois ocorreu no torneio de Wimblendon em 2008.

Federer & Mirka. Esse é um capítulo que vale a pena. Federer conheceu sua futura esposa nas Olimpíadas de Sidney, em 2000, quando se conheceram em uma festa e ficaram juntos pela primeira vez. De volta a Suíça, começaram a namorar. Mirka, também uma tenista profissional, teve que abandonar precocemente o tênis, aos 24 anos, devido a uma lesão no calcanhar. Por volta dessa época, ela já sabia do enorme potencial de Federer e começou a ajudá-lo nas coisas práticas do dia a dia, como reservar hotéis, aviões, ajudar a planejar as viagens do circuito, falar com a imprensa etc. Deu muito certo! Com sua personalidade forte e seu pragmatismo, Mirka ajudou enormemente a carreira do marido. Como disse um dos inúmeros entrevistados no livro, Federer deve 50% de sua carreira à Mirka, porque ela administra muita coisa, de modo que Roger só precise se preocupar em treinar e ganhar troféus. O engraçado é que, quando Federer tinha 19 anos e estava começando a namorar Mirka, com 22, seus amigos o aconselharam terminar o namoro, com a conversa de que ela era mais velha e logo iria querer casar, ao passo que seria bom para Federer continuar solteiro. Federer não escutou os seus amigos. Como disse um deles, anos depois, Federer fez a coisa certa! É de se notar que Mirka já era namorada firme de Federer antes de ele se tornar um astro do tênis e conquistar seu primeiro título em Wimblendon. Isso ajudou muito! Federer é um cara que gosta de estabilidade e tranquilidade para treinar e participar do torneios. No fundo, ela foi um dos segredos bem guardados para a incrível longevidade da carreira de Federer. "Mirka, que não fazia o papel de esposa-troféu, sabia o que era necessário para que o marido continuasse ganhando torneios", diz o autor. 

Alguns discordam, dizendo que o cara mais importante na carreira de Federer foi Pierre Paganini, o seu preparador físico e conselheiro espiritual, que o ensinou a fazer exercícios na medida certa, sem excessos, deixando mais tempo o atleta na quadra de tênis do que na sala de musculação ou na pista de corrida, livrando Federer de muitas lesões desnecessárias ao longo da carreira. Outros diriam que o elemento mais importante foram os pais de Federer, que educaram o filho com liberdade e senso de responsabilidade. Outros diriam que foi Peter Carter, seu primeiro treinador. Outros diriam que foi o psicólogo Christian Marcolli que o ajudou na época do juvenil a ter menos explosões e ter mais controle emocional. Seja como for, todas essas pessoas tiveram um influência capital na carreira do maior campeão de Wimblendon.

Outro ponto positivo do livro foi mostrar a família Federer unida rodando o mundo. Roger e Mirka casaram-se em 2009, mesmo ano em que Mirka deu à luz duas filhas gêmeas. O aumento da família não foi um obstáculo ao tênis. Ambos sabiam que Roger não poderia parar de jogar estando no topo e no auge da carreira. Mirka sempre foi pragmática, Roger adorava jogar tênis e o dinheiro sempre pode facilitar as coisas. Desse modo, contando com jatos particulares, um elenco rotativo de babás e reservas em hotéis centrais e bem localizados, o casal deu um jeito de toda a família (com mais um casal de gêmeos nascidos em 2014!) acompanhar Federer no circuito internacional de tênis, desde o Aberto da Austrália até o US Open. A família Federer, feliz, rodando o mundo, com Roger vencendo torneios com seus movimentos suaves. Essa é a imagem que fica. Assim parece fácil jogar tênis nesse nível. Mas não é. Daí porque tanta gente gosta dele. Entendeu? "Roger that".

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Yosemite

Yosemite é um mergulho na natureza norte-americana que vale a pena fazer uma vez na vida! O Yosemite National Park é gigantesco, com dezenas de trilhas, muitas cachoeiras, rios, um imenso vale e montanhas lindas. Os americanos adoram! Para quem gosta de turismo ao ar livre, natureza, trilhas e respirar ar puro, é uma ótima ideia. Mas cada épocas do ano tem sua beleza e seus inconvenientes. Pesquise antes de ir.

Os EUA têm parques nacionais gigantescos com uma beleza selvagem e protegidos por leis federais. Yosemite é um deles e fica no norte do estado da Califórnia.São mais ou menos 4 horas de viagem a partir de São Francisco, a cidade grande mais perto de Yosemite. A estrada é boa, mas antes de chegar no parque pega-se uma rodovia com muitas curvas acentuadas que vai subindo e serpenteando a montanha. Dica: vá devagar, apreciando a paisagem. No caminho até lá, passa-se por uma região que foi muito explorada por mineiros e garimpeiros na época da "febre do ouro". 

No primeiro dia, chegamos ao parque com o sol a pino e pegamos muito sol e calor na trilha das sequoias gigantes, que não tem muita cobertura vegetal, ao contrário do que eu esperava. Vimos muitas sequoias queimadas. Depois, ficamos sabendo que o fogo controlado é uma técnica para incentivar as sequoias a se reproduzirem. O resultado, porém, pelo menos no verão, não é muito agradável de se ver. A temperatura estava em torno de 33º C, 34º C. O calor estava infernal nesse verão de 2023. Hoje em dia, qualquer pessoa pode constatar, por experiência própria, como as mudanças climáticas estão atuando fortemente no planeta, que está aquecendo. No verão, é preciso um bom boné ou chapéu, roupas leves e uma garrafa de água. Mas esse primeiro dia valeu a pena para conhecer o Glacier Point, um lugar alto do qual se tem uma vista deslumbrante e é possível ver o Half Dome. 

O lugar era habitado por indígenas na época da colonização espanhola. Conta-se que quando os espanhóis puseram os pés naquelas terras encontraram indígenas de uma tribo que, ao serem interrogados, apontaram o dedo para lá e disseram: "-Yosemite", que quer dizer "killers" (assassinos), querendo dizer que lá estavam indígenas de outra tribo que tinham assassinado um dos seus. Tempos depois, já em domínio dos EUA, em 1864, Yosemite Valley e Mariposa Grove foram cedidos ao estado da Califórnia para que fosse administrado. No mesmo ano foi assinado o Yosemite Grant Act pelo então presidente Abraham Lincoln, uma lei para regulamentar a região e torná-la um parque nacional.

Yosemite é um parque gigantesco em que os visitantes entram de carro e gastam um bom tempo nas estradas. O bom de fazer excursão é que o guia já te leva nos melhores pontos para fotos e para apreciar a paisagem sem perda de tempo e sem risco de se perder. Sim, muita gente se perde dentro do parque, de carro ou a pé, nas trilhas. E são vários os pontos de parada obrigatória para conhecer: Glacier Point, Merced River, Half Dome, El Capitan, Yosemite Valley, Yosemite Fall trail, e muitos outros pontos. Isso só para ficar no que eles chamam de "Yosemite basics". Não dá para conhecer tudo. Não a toa, tem famílias americanas que vão e ficam no parque por uma semana inteira. 

Uma boa notícia é que você pode se hospedar lá dentro do parque, ou melhor, do vale, seja nos acampamentos, nos Lodges ou ainda nos dois hotéis que tem lá. A região é bem guarnecida de opções para dormir. Pesquise antes de ir. Também há locais para refeições, como o Yosemite Lodge Food Court, no Base Camp, uma boa opção antes de começar o dia e fazer qualquer uma das dezenas de trilhas. Tomamos café da manhã lá e depois de dormir e descansar, numa temperatura agradável, conseguimos fazer uma trilha de 3 horas curtindo a natureza, os esquilos, as cachoeiras e as montanhas. Foi incrível. Yosemite é um mundo à parte, como dizem alguns americanos.

domingo, 21 de maio de 2023

O que é meu é tudo aquilo que eu vi e gravei na memória

Um filho, que é sociólogo, escreve, em tom intimista, sobre o pai, José Bortoluci, nascido em Jaú/SP, em 1943, cujo apelido era Didi, mas na estrada era conhecido como Jaú. O pai, que trabalhou a vida inteira como caminhoneiro, foi diagnosticado com câncer colorretal em dezembro de 2020. O livro é uma aproximação, um encontro e uma despedida.

Enquanto concebia um jeito para escrever sobre o pai e sua profissão, talvez uma biografia, talvez um história social dos caminhoneiros, José Henrique Bortoluci, o filho, foi pego de surpresa pela notícia de uma metástase e os acontecimentos se precipitaram. O resultado foi um relato sobre as estradas que o pai já percorreu, uma espécie de memórias do pai e, de quebra, um ensaio sociológico sobre o Brasil de meados da década de 1960 para cá.

"Palavras são estradas", escreve o filho. "É com elas que conectamos os pontos entre o presente e um passado que não podemos mais acessar. (...) Palavras eram o presente que meu pai trazia de caminhão em minha infância. Elas ressoavam isoladas - boleia, transamazônica, carreta, rodovia, pororoca, Belém, saudades -, ou então formavam narrativas sobre um mundo que parecia grande demais. Eu tinha que imaginá-las com todas as cores, gravá-las na memória, me agarrar a elas, pois logo meu pai iria embora para voltar só dali a quarenta, cinquenta dias".

O filho, para superar o choque e a tristeza do diagnóstico dessa doença implacável chamada câncer, grava seis longas entrevistas com o pai, enquanto este está vivo, para entender esse pai e se aproximar do seu universo, que foi passar a vida na estrada, a carregar mudas de cana, soja, mantimentos, areia, pedra, o que fosse, percorrendo as estradas do país. O livro, escrito em plena pandemia do coronavírus, foi uma forma de superar a dor individual e coletiva.

Eu vi tanta coisa, filho. Devia ter tirado foto, ter escrito. Celular, essas coisas assim, não tinha. Não existia não. A única coisa que dava era pra ter fotografado com uma Kodak, essa máquina de fotografia branco e preto, mas o pai nunca teve. Porque se eu tivesse gravado tudo que eu fiz, você ia sentir o maior orgulho do seu pai. O que é meu é tudo aquilo que eu vi e gravei na memória. Então a única coisa que posso fazer é tentar recordar e contar.

O autor consegue costurar as memórias do "seu velho" pai caminhoneiro com suas análises sociológicas sobre esse Brasil grande e contraditório, que aposta no progresso, mas não investe na educação; que constrói estradas e abandona as ferrovias; que prega a liberdade de expressão, mas pede a volta da Ditadura; cuja elite ilustrada se instala no Sudeste e  dá as costas para a preservação da Amazônia. O filho culto, doutor em sociologia, entrevista o pai, que cursou só até a quinta série, mas que tem uma visão prática da vida, trabalhando desde menino e depois carregando muita carga debaixo da lona do seu caminhão. Ficam as histórias... 

Eu comecei a trabalhar com sete anos de idade com trator, arando terra. O vô Joanin naquela época tinha um sítio pequeno com os irmãos dele e tinham um tratorzinho. E sabe como que é criança... Eu via o vô guiar, subia no trator. Aqueles tratorzinhos de antigamente era igual aos de brinquedo de hoje, bem pequeno, mas eu era menor ainda. Então não tinha como eu trabalhar sentado no banco, eu ficava de pé no estribo. E arando terra a tarde inteira. Eu saía da escola, ia pra roça, ficava até cinco, seis horas da tarde. De sete até dez anos fiquei nessa vida, e foi aí que abandonei a escola e só trabalhava. Aos quinze ano, os meus pai mudou para a cidade e eu entrei pra trabalhar numa oficina. E trabalhei sete anos nessa oficina. Então foi assim: dos sete aos quatorze eu trabalhei como tratorista, dos quatorze até os vinte e um mais ou menos eu trabalhei como mecânico, e já com vinte e dois deixei a profissão de mecânico e fui pra pista.

"Pé na estrada e chuva no rastro", diz o ditado. É preciso sempre seguir em frente! No decorrer dessa longa estrada da vida, no deparamos com trechos fáceis e difíceis, muitas curvas, às vezes um lamaçal e até atoleiros dos quais precisamos de ajuda para sair. A estrada é uma metáfora da vida. E cada qual carrega uma carga no seu caminhão. Carga emotiva, inclusive. O que é meu, José Henrique Bortoluci, São Paulo: Fósforo, 2023, 138 pág. é um livrinho pequeno, quase de bolso, mas é enorme na grandeza emocional. O livro é uma preciosidade, uma viagem sobre o Brasil. Uma estrada sentimental que vale a pena ser percorrida. 

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Menina de ouro

Boxe é a magia de lutar além da resistência, "é a magia de arriscar tudo por um sonho que só você vê", diz a certa altura Scrap (Morgan Freeman), personagem e narrador do filme "Million Dollar baby" (Menina de ouro), 2005, filme dirigido e atuado por Clint Eastwood e com roteiro de Paul Haggis. A trilha sonora é composta de uma única música de piano, melancólica, que dá o tom emocional da trama. A medida que Eastwood foi envelhecendo foi tornando-se minimalista na direção.

Frankie Dunn (Clint Eastwood) é um cara "casca grossa", passou a vida nos ringues, tendo agenciado e treinado grandes boxeadores. Sua sala está cheia de troféus, mas ele já está numa fase decadente. Magoado com o afastamento de sua filha, Frankie apenas se relaciona com Scrap (Morgan Freeman), seu único amigo, que cuida também de seu ginásio. Até que surge Maggie Fitzgerald (Hilary Swank), uma jovem determinada que possui um dom ainda não lapidado para lutar boxe. Maggie quer que Frankie a treine, mas ele não aceita treinar mulheres. Apesar da negativa, Maggie decide treinar mesmo assim e insiste. Vencido pela determinação de Maggie, Frankie finalmente aceita treiná-la. 

Maggie chega do escuro, do nada, da sarjeta para tentar a glória num ginásio decadente em Los Angeles. Um sonho impossível. Ela veio do Missouri, da parte profunda dos EUA, daqueles americanos caipiras. Ela cresceu sabendo que era pobre, fazendo parte daquela camada social que é considerada trash, a ralé, que serve os fregueses, que limpa as mesas e varre o chão. No fundo, é a camada que faz o mundo girar, pois sem eles não haveria nenhum tipo de serviço (a cena em que ela limpa mesas foi filmada em Venice Beach, Los Angeles). Maggie é uma moça que não tem nada de material. Vive uma vida simples de proletária e mora num pardieiro. Ao mesmo tempo, ela é vontade, coração, músculo, pulmão, gana, tudo! Ela encarna a busca americana por uma oportunidade. Hilary Swank convence no papel, tanto assim, que ganhou o Oscar de melhor atriz nesse filme. Quando Frankie finalmente aceita treiná-la, ela parece uma criança de tanta felicidade! Ela não quer caridade, nem favores. Ela só quer lutar boxe profissional e quiçá ser campeã. Aliás, ela tem certeza que será campeã.

Mas o filme é triste. Há golpes da vida que nos derrubam às vezes. Golpes, pancadas, deslealdades. Há golpes da sorte ou do destino... Bem por isso Frankie costuma passar aos lutadores sua regra número um: lute, mas proteja-se o tempo todo. Mesmo assim, há conflitos, como na vida real, que parecem insolúveis. Há o afastamento da filha de Frankie que, apesar das dezenas de cartas, nunca lhe responde, nunca dá sinal de vida. Há também a ingratidão da família de Maggie, composta por um bando de aproveitadores. Não se compra o amor de ninguém. Abandonados, por assim dizer, por seus familiares, Frankie e Maggie tem um ao outro. Treinador e lutadora. "Mo Cuishle".  

Cinema e boxe foi um casamento que deu certo, haja vista os filmes "Touro indomável", de Scorsese, a saga Rocky, com Sylvester Stalonne e inúmeros outros. O boxe é uma metáfora da vida. Afinal, a vida é luta! A vida é feita de derrotas e vitórias. A vida é uma questão de manter o equilíbrio, apesar de todos os socos e golpes que sofremos. 

Lembro que fui assistir "Menina de ouro" no cinema, no Gemini, da Av. Paulista em São Paulo. No tempo dos cinemas de rua... Fui duas vezes e chorei as duas vezes. Filme bom é aquele que te emociona ou faz pensar. Esse faz as duas coisas, com o toque sutil de Eastwood, no auge da direção. No meio de tantas porcarias hoje em dia no streaming, esse é uma filme que vale a pena ser visto e revisto. Não é o melhor filme de Clint Eastwood como diretor, mas é um dos cinco melhores. 

quinta-feira, 6 de abril de 2023

A batalha das biografias

O maior trauma do "rei" Roberto Carlos ocorreu em sua cidade natal, Cachoeiro do Itapemirim/ES, aos 6 anos, quando um trem passou por cima de sua perna, o que lhe custou uma amputação logo abaixo do joelho. De outro lado, o maior trauma de Paulo Cesar Araújo ocorreu no dia 27 de janeiro de 2007 no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo/SP, quando, depois de 6 horas de audiência, na condição de réu em uma ação penal privada movida por seu ídolo, viu-se obrigado a assinar um acordo com o querelante e com os representantes da editora Planeta, o que significou a proibição e a retirada de circulação do livro Roberto Carlos em detalhes, fruto de laboriosos 15 anos de pesquisa. O escritor se sentiu abandonado pelos advogados da editora Planeta. Ambos tiveram perdas na vida. Não por acaso, traumas, é o título de uma das canções de Roberto. 

A sorte é que os traumas podem ser superados. Roberto Carlos aprendeu a conviver com a amputação da perna, tornou-se um cantor, buscou o sucesso, deu a volta por cima com a Jovem Guarda e o resto é história. Que, aliás, merece ser contada! Paulo Cesar de Araújo não desistiu daquela derrota no acordo judicial celebrado no Fórum da Barra Funda, que significou a proibição do seu livro e foi à luta. Para quem gosta de história da MPB, de biografias, de pesquisa, de Roberto Carlos, de batalha jurídica ou de tudo isso junto, recomendo a obra O réu e o rei: minha história com Roberto Carlos, em detalhes, Paulo Cesar de Araújo, 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 

Roberto Carlos é um artista incontestável, pelo sucesso e pela discografia. Eu mesmo que nasci em 1971 e cresci nos anos 80, achava na minha adolescência suas músicas bregas e piegas. Até que depois dos 30 anos me apaixonei e num momento de separação da minha atual mulher, um momento de muitas saudades, ouvi toda a discografia do Roberto Carlos dos anos 70, para mim indiscutivelmente a melhor fase do artista, e me rendi ao seu inegável talento. Mas o que fez Roberto Carlos processar o autor de sua biografia? Na cabeça de Roberto Carlos era inadmissível que uma terceira pessoa desconhecida contasse a sua história, incluindo momentos doloroso e íntimos, explorando a vida privada do cantor e ganhando dinheiro com isso. Ele viu exploração comercial. Na cabeça de RC, malgrado ele seja um artista famoso, somente ele poderia contar a sua própria história. Contudo, é sabido que os artistas são pessoas públicas, que fazem parte da história cultural do Brasil, de modo que é óbvio que, num país sério, com liberdade artística e de expressão, uma biografia respeitosa escrita por um autor sério não poderia se proibida como foi. Além disso, o próprio Roberto Carlos já contou trechos e momentos muito dolorosos e íntimos de sua própria vida em muitas canções confessionais. Falou de momentos difíceis da infância na música "O Divã", falou das dores pós acidente na música "Traumas"; de sua cidade natal na música "Meu pequeno Cachoeiro"; da vida conjugal na música "Quando as crianças saírem de férias"; do pai na música "Meu querido, meu velho, meu amigo"; do amigo Erasmo Carlos na música "Amigo"; da mãe na música "Lady Laura" e de sua fé na música "Jesus Cristo", entre tantas outras músicas confessionais.

O réu foi inteligente. Impedido de comercializar sua obra, por conta de um acordo judicial discutível, trazido à fórceps pela vontade e pressão do cantor em proibir aquela obra, de um juiz imparcial, de um entendimento de se proibir a publicação de biografias não autorizadas à época, da interpretação do art. 20 do Código Civil e de um medo da editora Planeta de pagar uma multa milionária, Paulo Cesar de Araújo mudou de tática. Ele então contou a história da sua vida, desde que era menino em Vitória da Conquista e comprava os discos de seu ídolo, passando por seu gosto por música nacional, pelo trabalho na ótica, pelas faculdades que cursou até a sua carreira como pesquisador e escritor. O livro que lhe rendeu mais alegria e não foi censurado foi "Eu não sou cachorro não", sobre a dita música brega e a coragem importância desses artistas, como Odair José e Agnaldo Timóteo, escrito e lançado antes do livro que foi censurado pelo "rei". 

Pesquisador incansável, Paulo Cesar de Araújo pelejou para entrevistar Tom Jobim, o primeiro de sua lista. Depois conseguiu entrevistar Caetano Veloso e por aí a lista só engrossou. Paulo Cesar entrevistou praticamente todos os músicos, cantores e cantoras do Brasil, de Tim Maia a Wanderléia, de Waldick Soriano a Chico Buarque. Nessa busca por entrevistas que começou na década 90, uma das passagens mais inusitadas e divertidas do livro é a amizade que fez com ninguém menos do que João Gilberto. Buscando marcar uma entrevista com o inventor da Bossa Nova, o pesquisador telefonou para João Gilberto, apresentou seu projeto de pesquisa e perguntou se poderia entrevistá-lo. Este, que é conhecido por ser um artista recluso e adorar um papo por telefone, a ponto de Tim Maia dizer que "João Gilberto não é uma pessoa, é um telefone",  lá pelas tantas perguntou ao pesquisador: "Você é baiano?". A partir daí começou uma conversa de quase uma hora. Meses depois, retomando a conversa, ao saber que Paulo Cesar não falava há 13 anos com seu pai, João Gilberto se espantou e o aconselhou de forma veemente: "Um pai nunca esquece um filho. Pois escreva uma carta para ele e vai ver como tudo irá melhorar. Isso vai fazer um grande bem para todo mundo (...)". O autor seguiu os conselhos do artista e tudo ficou bem. 

Fazer um bem para todo mundo fez o plenário do STF, em 10/06/2015, quando julgou a ADI 4815, que liberou as biografias ditas não autorizadas. "Cala a boca já morreu", disse Carmem Lúcia, relatora da ação, ao dizer que, no caso, o direito à informação e à cultura é mais importante do que o direito à privacidade do biografado. E, caso o biógrafo ofenda o biografado ou falte com a verdade, o Direito Brasileiro já tem instrumentos para reparar o dano. A ação direta de inconstitucionalidade proposta pela ANEL (Associação Nacional dos Editores de Livros) foi julgada procedente "para dar interpretação conforme à Constituição aos arts. 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível autorização de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais (...)".  Mas até lá a batalha jurídica foi longa e o livro, que foi escrito antes do julgamento da ADI 4815, conta essa batalha. O autor conta os bastidores dos dois processos judiciais que Roberto Carlos lhe moveu: um cível e outro criminal. Como num processo terapêutico, ele conta tudo para superar seu trauma.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Razão para viver

Viktor E. Frankl teve muito a dizer. Não só por conta de seus estudos de psiquiatria e psicologia na Viena de Freud, mas também pelas suas experiências pessoais e coletivas. Prisioneiro de guerra, ele conta sua experiência em quatro campos de concentração nazista. Frankl narra o sofrimento dos judeus na Segunda Guerra Mundial, com todas as letras e de forma consciente. Eu nunca havia lido um relato tão detalhado sobre a rotina de um prisioneiro num campo de concentração. Já havia assistido a filmes, como a Lista de Schindler, o Resgate do Soldado Ryan e A vida é bela, apenas para ficar nos mais famosos. Aqui, porém, o mergulho é mais realista e convida o leitor a reflexões sobre a dor, o sofrimento, a insanidade e o sentido da existência humana.

O relato da chegada do trem em Auschwitz é muito impactante. Assim como os primeiros dias, a seleção dos prisioneiros (quem ia trabalhar e quem ia para a câmera de gás), a fome, a apatia, as humilhações, as condições sub-humanas a que os judeus eram submetidos, o medo dos prisioneiros, a tensão pela sobrevivência, as mortes, o escárnio dos soldados alemães, o sadismo dos guardas, a inspeção dos alojamentos, os castigos, os trabalhos forçados, o caminho até a plantação, os sonhos dos prisioneiros e uma variedade enorme de detalhes são narrados por Frankl. O autor escreveu o livro em 1945, ao longo de apenas nove dias. Muito provavelmente ele sentiu a urgência de escrever enquanto seu ser estava impregnado com aquela experiência terrível e antes que sua memória se esvaísse. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração; Viktor E. Frankl, traduzido por Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline, 48.ed. - São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 2019, é um livro dividido em 3 partes: 1) Em busca de sentido, onde é contada sua experiência no campo de concentração; 2) Conceitos fundamentais de logoterapia e 3) A tese do otimismo trágico. O livro tornou-se um clássico da psicologia e um best-seller internacional.

Para que continuar vivendo em um ambiente desses? Por que não cometer suicídio, como muitos prisioneiros fizeram? Por que a vida tem um sentido. Toda vida tem um sentido. Único. A razão pode ser um filho, uma esposa, um marido, uma mãe, um pai ou alguém que lhe seja especial. Também pode ser um trabalho, um dom, uma obra inacabada, um serviço para o bem ou inúmeras outras coisas. A vida tem sentido. Você só precisa encontrá-lo. Nenhuma vida é sem sentido. A vida é o bem mais precioso que um ser humano tem. Podem lhe tirar tudo, a casa, o trabalho, o dinheiro, a família e até a liberdade, mas ainda sim o prisioneiro conserva a vida. As pessoas com mais força interior conseguem conservar a dignidade e essa chama divina chamada esperança. A vida nos foi dada com percalços e pedras no caminho. Nem tudo são flores. São espinhos também. E a vida não é só o resultado do meio, das condições físicas, econômicas e psicológicas em que a pessoa vive. Mesmo vivendo em condições terríveis, remanesce na pessoa, no fundo do seu ser, uma liberdade interior capaz de optar, a cada hora, a cada segundo, se deseja progredir ou regredir na escala evolutiva; se deseja dar uma palavra de conforto ao seu colega que sofre ou fechar a cara e chutar as pedras do chão; se deseja manter a luz da esperança ou se entregar ao desânimo e ao desespero. Há sempre opção. Há sempre uma escolha na forma como encaramos a vida, mesmo nas condições mais miseráveis. Viktor Frankl, por pura sorte, escapou da morte mais de uma vez. Uma vez poupado, escolheu viver. Resistiu. Sobreviveu ao horror. Foi libertado. Recuperou-se, voltou a lecionar e a escrever, dedicando-se à nobre tarefa de não somente prevenir suicídios, mas ajudar as pessoas a encontrar um propósito para suas vidas.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Memórias de um promotor público de São Paulo

Hélio Bicudo (1922-2018) foi promotor de Justiça de São Paulo, tendo atuado em Igarapava, Franca e Araçatuba antes de ser promovido para a capital. Defensor dos direitos humanos, atuou contra o Esquadrão da Morte na década de 70 e foi membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Também foi um dos membros fundadores do PT e deputado federal por dois mandatos, tendo se decepcionado com o partido e se desfiliado em 2005. O livro Minhas Memórias/Hélio Pereira Bicudo, São Paulo: Martins Fontes, 2006, 230 p. é conciso e, ao mesmo tempo, uma lição de vida. Um testemunho de alguém que procurou contribuir para a sociedade. Uma vida voltada ao interesse público.

Hélio Bicudo começa suas memórias contando sobre o chamado "Esquadrão da Morte", organização criminosa formada por policiais militares, que ajudou a combater. O esquadrão tinha esse nome porque matava pessoas. O pior criminoso é o policial criminoso; aquele que, investido em uma função estatal e protegido por uma farda e um distintivo, pratica crimes. Assim ele contextualiza: "O Brasil vivia o terceiro governo do regime militar instalado em 1964, presidido pelo General Emílio Garrastazu Médici. Desde 1968, com a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que restringiu direitos individuais e ampliou o poder discricionário do Estado, o país tinha passado a viver sob uma ditadura explícita. A oposição ao governo se intensificou com a guerrilha urbana, iniciada por grupos de esquerda, que agiam na clandestinidade. A reação a esse movimento se deu na forma de forte repressão, exercida por unidades militares e grupos policiais que não hesitaram em utilizar meios ilícitos de atuação, entre eles a tortura. Dentro desse contexto de acirramento político (...) uma série de assassinatos passaram a ocorrer na Grande São Paulo, atribuídos a uma organização que se autodenominava Esquadrão da Morte". Num contexto de crescimento da criminalidade, o esquadrão matava para mostrar serviço.

A luta contra o referido esquadrão foi longa e gerou contrariedade entre as autoridades da época. Nas palavras do autor, "o esquadrão contava com a benevolência do governador Abreu Sodré e dos seus secretários da Segurança". Assim, o promotor de justiça quase não obteve ajuda, tendo recebido o auxílio de apenas dois colegas promotores. Desse modo, foi difícil chegar à responsabilização dos assassinos, inclusive do chefe da organização, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, que tanta gente matou e torturou. Ao final, dos 35 policiais denunciados, apenas seis, de menor hierarquia, foram condenados. "Os delegados foram todos absolvidos. Eram intocáveis", conta. Para quem quiser se aprofundar no tema, vale ler Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte, do mesmo autor, publicado pela editora Martins Fontes, em 1976.   

Antes disso, na década de 50, Hélio Bicudo tentou, sem sucesso, responsabilizar o Governador de São Paulo Adhemar de Barros por negócios escusos. Dono do bordão "rouba, mas faz", Adhemar foi um político conservador que ficou famoso por tentar extorquir empresários e pedir propinas em troca de favores e concessão de obras. Uma figura polêmica, senão lendária. Adhemar de Barros foi condenado em 1956 e fugiu para a Bolívia. Posteriormente, o processo foi remetido para instâncias superiores que entenderam que esse caso estava encartado em outro processo, que culminou em absolvição. E tudo ficou por isso mesmo. É difícil fazer justiça no Brasil.

A carreira de Bicudo como promotor seguiu as regras do Ministério Público. Mas sua atuação era firme em busca da justiça; nunca concebeu uma atuação burocrática. Em Igarapava, ainda na década de 1940, o jovem promotor conseguiu, por meio de um acordo, fazer uma usina de Açúcar respeitar direitos trabalhistas de mais de uma centena de trabalhadores rurais. Em Franca, tentou responsabilizar uma dona de casa de prostituição mantida por "varões endinheirados da região", por submeter jovens a trabalhos análogos à escravidão. A iniciativa provocou uma enorme gritaria e incomodou gente graúda. Esse fato, aliado a uma investigação contra o Prefeito determinaram a mudança do promotor da Comarca. Em Sorocaba, Bicudo tentou responsabilizar um médico cirurgião por um homicídio culposo, que "esquecera uma pinça no abdome da parturiente", mas a abertura de inquérito gerou uma polêmica na cidade. Bicudo foi promovido e teve que mudar de comarca antes de sair a absolvição. "O espírito de classe falava mais alto, e não se compreendia que um médico sofresse um processo por desvio ou má conduta profissional". Sem privilegiar ou favorecer ninguém, o jovem promotor foi galgando degraus na carreira, do interior para a capital. "Creio que minha inclinação pela defesa dos direitos fundamentais decorreu do contato que a profissão me proporcionou com as camadas mais pobres e mais marginalizadas da população".

Bicudo também participou ativamente da vida política. Primeiramente trabalhou no Governo Carvalho Pinto (1959-1963), do qual foi assessor. Depois, no início dos anos 1980 participou da fundação do PT, onde teve um primeiro encanto e depois alguns desencontros... O livro narra alguns desses desapontamentos com o partido, como  a falta de apoio aos seus projetos de lei. Um deles finalmente emplacou com a ajuda do deputado Luís Eduardo Magalhães e virou lei. A Lei 9.299/1996 determina que os crimes dolosos contra a vida praticados por PMs contra civis sejam julgados pela Justiça Comum (e não pela Justiça Militar). Sim, Bicudo não se conformava com a impunidade de policiais militares que matavam indiscriminadamente e, depois, julgados pela Justiça Militar (uma Justiça Especial) conseguiam a absolvição. O livro de memórias narra sua luta incansável pelos direitos humanos ao lado de Dom Paulo Evaristo Arns e tantos outros. Foi uma vida profícua que valeu a pena!