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segunda-feira, 23 de outubro de 2023

A fé de Maria do Rosário

Trecho do livro "Veia bailarina", de Ignácio de Loyola Brandão. São Paulo: Global, 1997.

"Sofria por antecipação. Característica que herdei de minha mãe. A vida para ela foi difícil, viveu crispada, os nervos à flor da pele. Lutava momento a momento, jamais relaxava. Tinha medo de perder o que ela e meu pai conseguiram em anos de trabalho. Meu pai, Antônio, filho de um seleiro e carpinteiro, fez carreira em ferrovia, chegou a dirigir o escritório central da Estrada de Ferro Araraquara. Crescido, eu me orgulhava de ver, em todas as estações e escritórios, o nome de meu pai nos comunicados, que impunham ordens e regulamentos. Minha mãe, Maria do Rosário, era filha de um homem inquieto, que teve todos os tipos de emprego, adorava política e discursos, era fanático pelo Partido Social Democrático, aposentou-se pobre como porteiro de grupo escolar. (...) Antônio e Maria casaram-se, criaram filhos compraram casa. Ao deixar a ferrovia, ele montou uma indústria de sacos de papel, comprou um carro aos 60 anos, aprendeu a guiar mal, desistiu (será por isso que não dirijo?), economizou um pouco de dinheiro, ergueu casas para meus dois irmãos. Totó e Maria representaram uma época, um momento da história do Brasil em que havia possibilidades de ascensão para os que vinham de classes baixas. 

O que construíram não parecia muito, olhado de fora. No entanto, foi bastante grande para a mulher que cresceu com pouca instrução e aos 13 anos se viu sem mãe, a cuidar dos irmãos. O que a salvou foi a fé, à qual se agarrou como a última tábua num oceano. Fé que conservou até o final e a levou a morrer em paz, certa de ter vivido honesta e decentemente. Tão honesta que chegava às raias do radicalismo quando se tratava das coisas de Deus e da igreja, moral e valores. 

(...) 

Quando vim para São Paulo, contra sua vontade, ela me queria no Banco do Brasil ou na estrada de ferro, recomendou: "Pois bem, vá! Te entrego a São José". Obtive meu primeiro emprego, no jornal Última Hora, no dia 19 de março. Dia de São José, para quem não conhece o calendário. Herdei dela o sentido trágico e uma certa mania de perseguição. Via conspirações aqui e ali, numa crítica, numa ausência de notícia, no fato de meu livro não estar na lista de mais vendidos, na platéia semivazia em uma palestra. Pequenos fatos, pura besteira! Que importância tem tudo isso? O que acrescenta, modifica?

Anos e anos ouvi as conversas dos dois, pai e mãe, à noite. Sussurros, crianças não tinham nada que ver com a vida, as dificuldades. "Nunca te promovem, está sempre alguém na frente, esse Fernando Vicente te deixa para trás todas as vezes", protestava ela. Fernando Vicente era um todopoderoso, a imagem que trouxe dele, sem jamais conhecê-lo, era a de um totalitário perverso que ignorava meu pai. O homem morava em frente ao jardim, numa casa que parecia um pequeno castelo. Ali se ergue agora a igreja dos mórmons. 

Minha mãe falava como se meu pai fosse o culpado, enquanto outros, apaniguados, iam subindo e ocupando cargos que deveriam ser dele por mérito e tempo de serviço. Por ser extremamente responsável, fazer horas e horas extras não pagas, calcular todas as tarifas com extrema precisão. Homem que jamais faltou ao trabalho, eu o via sair em manhãs de tempestade com guarda-chuva e galocha preta, chapéu (homens de respeito usavam chapéu), pontual, devotado à Estrada de Ferro, sua vida, sua paixão. E minha mãe, indignada contra os diretores politiqueiros que não reconheciam o talento e o esforço de meu pai para as estatísticas, o suor que ele deixava nas mesas da contadoria. Voltava-se contra ele por não protestar, gritar, exigir, sem perceber, inocente que era das coisas políticas, a engrenagem fascistóide da ferrovia, pequenos mussolinis circulavam pelo prédio da Rua Gonçalves Dias, pela estação, por toda parte. (...) 

Temerosa a cada novo passo de meu pai, Maria do Rosário viveu apavorada com a possibilidade de tomarem nossa casa, hipotecada por décadas. Um fantasma. "Ainda vamos perder a casa", ouvi a infância inteira. E talvez por isso, cinquenta anos depois, sonho com meus apartamentos inundados, devastados, demolidos e vazios. Perco as chaves, não encontro minha casa, não sei onde ela está. Percebo agora como o episódio de Zero em que Rosa não encontra a sua casa no imenso conjunto habitacional, onde todas as moradias são absolutamente iguais e anódinas, tem um sentido. 

Há muita coisa inexplicada. Milagres talvez possam acontecer. Minha mãe acreditava neles e em graças, favores concedidos. Sua fé nas forças irradiadas por São José, Santa Rita de Cássia, Coração de Jesus, Nossa Senhora de Lourdes era sem tamanho. Uma de suas canções favoritas, ao lavar roupa, segunda-feira, era:

O anjo descendo

num raio de luz,

feliz Bernardete, 

à fonte conduz. 

Ave, ave, ave Maria!

Bernardete era Bernardette Soubirous, a camponesa semi-analfabeta que viu Nossa Senhora, em Lourdes, França, 1858".

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