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terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Tragédia em Mariana

Impactante, real, estarrecedor, verdadeiro e profundamente humano. Tragédia em Mariana - a história do maior desastre ambiental do Brasil, Cristina Serra, editora Record é um dos melhores livros lançados em 2018. Trata-se de livro-reportagem escrito pela corajosa jornalista Cristina Serra, ex-repórter da Rede Globo, que cobriu a tragédia em Mariana para o Fantástico e retornou ao local diversas vezes para fazer a matéria e escrever sobre o antes, o durante e o depois do rompimento da Barragem de Fundão, ocorrida em 2015. O livro conta a história da empresa Samarco, com seus altos e baixos. Revela que a tragédia se deu em um contexto econômico internacional de queda do preço do minério de ferro, no qual a Samarco optou por reduzir custos no quesito segurança das barragens. Como diz o editor Carlos Andreazza, "O Brasil está todo aqui. Potência. Poder. Ruína. O sistema corpulento que, movido a incompetência, negligência, corrupção e burocracia, sempre nos atrasa". Eu diria ganância também... A autora entrevistou diretores da Vale e da Samarco, operadores, maquinistas, terceirizados, vítimas da tragédia, engenheiros, geólogos, especialistas para compor um quadro mais abrangente do que aquele que vimos na grande mídia. Aqui a informação desce a detalhes: quais foram as causas do rompimento da barragem? Quem não viu o que? Onde houve negligência? O que poderia ter sido feito para evitar aquele desastre? Cristina Serra entrevistou Joaquim Pimenta de Ávila, o projetista da barragem de Fundão. Ela conta a história de Ricardo Vescovi, o presidente da Samarco à época do rompimento da barragem. As tentativas das mineradores de fugir à responsabilidade. Discorre sobre o plano de expansão da Samarco, que se efetivou sem a necessária contrapartida em investimentos destinados a dar maior segurança aos trabalhadores e às comunidades do entorno. O livro também narra os dramas individuais das vítimas. Aqui vai muito a alma do repórter, da experiente jornalista que tem uma história ligada à defesa dos direitos humanos. Cristina se coloca no lugar das vítimas e narra as dores daqueles que perderam seus maridos, pais, filhos e irmãos. Enfim, é um livro necessário de uma tragédia que poderia ter sido evitada e, com certeza, não pode ser esquecida.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

O espetáculo da corrupção

 A corrupção é coisa antiga. O Estado sempre foi alvo de ladrões e da rapinagem. O combate à corrupção como política de Estado, todavia, e realizado por meio de órgãos de inteligência é algo completamente novo. O Brasil engatinha nessa área. Na Itália, esse combate surgiu mais fortemente na década de 80, após os homicídios de Pio La Torre e Carlo Alberto Dalla Chiesa e, miseravelmente, fracassou. Nos EUA surgiu em meados do século XX e teve sucesso. Por que um país foi bem sucedido e o outro não?

O livro O espetáculo da corrupção: como um sistema corrupto e o modo de combatê-lo estão destruindo o país/Walfrido Warde. - Rio de Janeiro: LeYa, 2018. 144p. responde a essa e outras questões. Lançado em 2018, portanto antes de a Operação Lava Jato perder ímpeto, o livro tem um tom de desabafo. O título é sugestivo: a corrupção como espetáculo. Assim ela foi retratada na televisão, desde 2014, com imagens de empresários sendo presos, algemados e conduzidos para a carceragem da Polícia Federal, num esquema digno de Hollywood. O Ministério Público montava uma força-tarefa e acordos de delação premiada eram feitos aos borbotões. Ao mesmo tempo em que, dia após dia, a mídia bombardeava os telespectadores com diálogos oriundos de interceptações telefônicas, juízes e procuradores da Lava Jato posavam de salvadores da pátria e depuradores do sistema. Enquanto isso, as principais empreiteiras de infraestrutura no país sofriam duríssimas penalidades, com demissões em massa. E o Brasil, inserido em uma gravíssima crise econômica, mergulhava cada vez mais em uma espiral autodestrutiva. Esse é o quadro pintado por Warde, conhecido advogado empresarial da área de compliance.

O livro não critica o combate à corrupção, mas o modo como isso foi feito no Brasil. A preocupação do autor volta-se para as grandes empresas brasileiras do setor de infraestrutura, que foram à lona com a Operação Lava Jato. Partindo do pressuposto de que há 4 pilares de combate à corrupção, o autor diz que o sistema brasileiro fortaleceu apenas dois: a detecção da delinquência e o sistema de punições, com o auxílio poderoso das Leis 12.850/2013 (Lei de Organização Criminosa - Delação Premiada) e 12.846/2013 (Lei Anticorrupção - Leniência), ambas editadas no governo Dilma Roussef, o que acabou por desequilibrar o sistema. Para Warde, falta delimitar o âmbito da delinquência; isto é, indicar de modo claro o que é ilícito e o que é lícito. Ao analisar o lobby pré-eleitoral, diz que o financiamento eleitoral de campanha era lícito até o julgamento da ADI 4650. Na campanha presidencial de 2010, por exemplo, grandes empreiteiras "doaram centenas de milhões de reais" para diversos partidos políticos. E por que? Porque tinham interesse em fechar contratos com a Administração Pública. Mas depois, com o julgamento da ADI 4650 pelo STF, o financiamento empresarial de campanha passou a ser proibido. Ou seja, antes podia. Agora não pode mais. E as delações premiadas revelaram o que todo mundo já sabia (ou suspeitava), que as doações empresariais de campanha não eram inocentes. É lógico que as empresas queriam algo em troca. O autor acrescenta que o lobby pós-eleitoral também precisa ser regulado, assim como é feito nos EUA, para não deixar "fio desencapado". O lobby pós-eleitoral, hoje exercido pelas Frentes Parlamentares, necessita de uma clara regulação, para que se saiba o que é e o que não é corrupção.

Outra questão levantada é que a punição da corrupção tem funcionado bem, mas a leniência não, pois, no início, as empresas nem sabiam com quem falar. Assim, tendo em vista a confusão de órgãos públicos, muitas vezes a empresa que celebrava acordo com o Ministério Público, não se livrava de ser declarada inidônea pela CGU ou pelo TCU. E, quando tudo começou, em 2014, as empresas não sabiam com quem conversar e o Estado ainda não sabia, nem tinha expertise em fazer acordo de leniência. Um embate surdo se deu até que, em meados de 2015, a ala linha dura do MPF foi demovida da ideia de restringir a leniência, pois até nisso se cogitou... 

O autor aponta a ilusão de parcela do povo brasileiro: a crença de que o remédio amargo imposto pelos órgãos de persecução penal trará um país mais confiável amanhã e com o dinheiro roubado de volta aos cofres públicos. Ledo engado. Se é questionável o fim da corrupção no Brasil por meio da famigerada Operação Lava Jato, não há dúvidas, diz, de que esse combate a qualquer custo contribuiu para fechar empresas e aumentar a crise econômica. E ainda não saímos da recessão. Daí que faltou planejamento e estratégia para fazer o bom combate, pois é preciso limpar sem destruir.  E o autor traz, em números, as consequências dos arroubos justiceiros num país com elevado índice de desemprego. Desde o início da Operação Lava Jato, a Andrade Gutierrez demitiu 90 mil empregados; a Odebrecht  95 mil; a OAS 80 mil; a Camargo Correa 12.500, e por aí vai... Sem esquecer de que atrás de cada pessoa demitida existe uma família. Assim, o autor aponta as rachaduras do edifício de combate à corrupção e alerta que somente voluntarismos não resolvem.  

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Rita Lee



Divertida, paulistana, doidinha, verdadeira, inteligente e debochada. Assim se revela uma das cantoras mais alto astral da terra brasilis. Rita Lee: uma autobiografia, Globo Livros, 292 páginas é gostoso de ler. Uma leitura leve. E, por não ter pretensões a ser um livro "fodaço", o resultado ficou ótimo. Nota-se que a cantora não quer impressionar, mas apenas passar sua vida a limpo e deixar um legado por escrito, exorcizando velhos fantasmas. Construído com capítulos curtos, o livro narra vida da artista, desde a infância, na "pacata Vila Mariana", quando morava com sua família no casarão da rua Joaquim Távora. Interessante ver, pelos relatos, como era a São Paulo daqueles tempos, mais bucólica, inocente e horizontal, com seus bondes, colégios e um Ibirapuera que ainda não era parque, mas uma mata fechada convidativa para pic-nics. E se Rita Lee era a "mais completa tradução" de Sampa, como disse Caetano Veloso, é preciso notar que a cidade piorou muito. Desumanizou-se.

Rita, uma mistura de sangue norte-americano (Charles) com sangue italiano (Chesa), virou uma menina viva e criativa. A cantora escreve de um jeito que o leitor desenvolve um olhar afetivo para toda a sua família, inclusive irmãs, agregadas e os bichos de estimação. A narrativa passa pelas brincadeiras infantis, quando era ela terrível e aprontava todas, pela adolescência, época em que era fã dos Beatles e de James Dean, e chega na época da vida adulta, quando encontrou o amor de sua vida e teve filhos.

Posso estar errado, mas suspeito que Rita Lee quis escrever sua própria biografia para não ficar sujeita a versões lá não muito confiáveis. Pela leitura, dá pra ver que ficaram traumas de "rasteiras" que ela levou, como ser expulsa dos Mutantes e ter sido presa durante a Ditadura Militar. Aliás, é a narrativa envolvente e engraçada que dá ao texto (principalmente nesses traumas da vida) um gosto peculiar e confidente, muito gostoso de acompanhar. Os irmãos Baptista (Arnaldo Baptista e Sérgio Dias) são chamados de "ozmano" e não são poupados da língua ferina da artista. Fica muito engraçado. Há rancores, mágoas e ressentimentos sim. Mas ela não se deixa afundar por causa disso. A leitura segue bem-humorada. Como boa e velha roqueira, ela exorciza os próprios demônios. É preciso ter coragem para se expor. Alvo constante de julgamento morais, ela sempre soube manter uma postura altiva. Bom que se diga, que ela não fez nada que pessoas da geração dela não fizeram, como fumar maconha, tomar LSD. Mas é que vivemos numa época chata, de muitas críticas. Neguinho não pode espirrar que já tá sendo criticado nas redes sociais. A Ovelha Negra é corajosa. 

É surpreendente ver a trajetória musical de Rita Lee, desde Os Mutantes até a sua consagração nos anos 80 ao lado do músico, guitarrista e marido, Roberto de Carvalho. Naquela época era um sucesso atrás do outro, como Lança-perfume, Só de você e On the rocks. Ao lado disso, ficamos sabendo de muitas coisas divertidas, como o "Bauretz" do Tim Maia, o QG baiano na Avenida São Luiz e as cobras do Alice Cooper que Rita Lee pegou para criar. Doida! E as amizades com Elis Regina, Ney Matogrosso Hebe Camargo e outros. Rita Lee é um espírito leve. O livro é um facho de luz nesses tempos sombrios em que vivemos. A biógrafa de si mesma revela-se uma combatente da hipocrisia e escreve com uma fina ironia. Sempre com bom humor. Lançado no final de 2016, a obra teve uma calorosa aceitação por parte do grande público.