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domingo, 21 de maio de 2023

O que é meu é tudo aquilo que eu vi e gravei na memória

Um filho, que é sociólogo, escreve, em tom intimista, sobre o pai, José Bortoluci, nascido em Jaú/SP, em 1943, cujo apelido era Didi, mas na estrada era conhecido como Jaú. O pai, que trabalhou a vida inteira como caminhoneiro, foi diagnosticado com câncer colorretal em dezembro de 2020. O livro é uma aproximação, um encontro e uma despedida.

Enquanto concebia um jeito para escrever sobre o pai e sua profissão, talvez uma biografia, talvez um história social dos caminhoneiros, José Henrique Bortoluci, o filho, foi pego de surpresa pela notícia de uma metástase e os acontecimentos se precipitaram. O resultado foi um relato sobre as estradas que o pai já percorreu, uma espécie de memórias do pai e, de quebra, um ensaio sociológico sobre o Brasil de meados da década de 1960 para cá.

"Palavras são estradas", escreve o filho. "É com elas que conectamos os pontos entre o presente e um passado que não podemos mais acessar. (...) Palavras eram o presente que meu pai trazia de caminhão em minha infância. Elas ressoavam isoladas - boleia, transamazônica, carreta, rodovia, pororoca, Belém, saudades -, ou então formavam narrativas sobre um mundo que parecia grande demais. Eu tinha que imaginá-las com todas as cores, gravá-las na memória, me agarrar a elas, pois logo meu pai iria embora para voltar só dali a quarenta, cinquenta dias".

O filho, para superar o choque e a tristeza do diagnóstico dessa doença implacável chamada câncer, grava seis longas entrevistas com o pai, enquanto este está vivo, para entender esse pai e se aproximar do seu universo, que foi passar a vida na estrada, a carregar mudas de cana, soja, mantimentos, areia, pedra, o que fosse, percorrendo as estradas do país. O livro, escrito em plena pandemia do coronavírus, foi uma forma de superar a dor individual e coletiva.

Eu vi tanta coisa, filho. Devia ter tirado foto, ter escrito. Celular, essas coisas assim, não tinha. Não existia não. A única coisa que dava era pra ter fotografado com uma Kodak, essa máquina de fotografia branco e preto, mas o pai nunca teve. Porque se eu tivesse gravado tudo que eu fiz, você ia sentir o maior orgulho do seu pai. O que é meu é tudo aquilo que eu vi e gravei na memória. Então a única coisa que posso fazer é tentar recordar e contar.

O autor consegue costurar as memórias do "seu velho" pai caminhoneiro com suas análises sociológicas sobre esse Brasil grande e contraditório, que aposta no progresso, mas não investe na educação; que constrói estradas e abandona as ferrovias; que prega a liberdade de expressão, mas pede a volta da Ditadura; cuja elite ilustrada se instala no Sudeste e  dá as costas para a preservação da Amazônia. O filho culto, doutor em sociologia, entrevista o pai, que cursou só até a quinta série, mas que tem uma visão prática da vida, trabalhando desde menino e depois carregando muita carga debaixo da lona do seu caminhão. Ficam as histórias... 

Eu comecei a trabalhar com sete anos de idade com trator, arando terra. O vô Joanin naquela época tinha um sítio pequeno com os irmãos dele e tinham um tratorzinho. E sabe como que é criança... Eu via o vô guiar, subia no trator. Aqueles tratorzinhos de antigamente era igual aos de brinquedo de hoje, bem pequeno, mas eu era menor ainda. Então não tinha como eu trabalhar sentado no banco, eu ficava de pé no estribo. E arando terra a tarde inteira. Eu saía da escola, ia pra roça, ficava até cinco, seis horas da tarde. De sete até dez anos fiquei nessa vida, e foi aí que abandonei a escola e só trabalhava. Aos quinze ano, os meus pai mudou para a cidade e eu entrei pra trabalhar numa oficina. E trabalhei sete anos nessa oficina. Então foi assim: dos sete aos quatorze eu trabalhei como tratorista, dos quatorze até os vinte e um mais ou menos eu trabalhei como mecânico, e já com vinte e dois deixei a profissão de mecânico e fui pra pista.

"Pé na estrada e chuva no rastro", diz o ditado. É preciso sempre seguir em frente! No decorrer dessa longa estrada da vida, no deparamos com trechos fáceis e difíceis, muitas curvas, às vezes um lamaçal e até atoleiros dos quais precisamos de ajuda para sair. A estrada é uma metáfora da vida. E cada qual carrega uma carga no seu caminhão. Carga emotiva, inclusive. O que é meu, José Henrique Bortoluci, São Paulo: Fósforo, 2023, 138 pág. é um livrinho pequeno, quase de bolso, mas é enorme na grandeza emocional. O livro é uma preciosidade, uma viagem sobre o Brasil. Uma estrada sentimental que vale a pena ser percorrida. 

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