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sábado, 2 de outubro de 2021

Justiça - Maria Augusta Ramos

"Justiça" é o título de um documentário (2004) de Maria Augusta Ramos (disponível na Netflix) retratando o sistema de Justiça penal no Brasil e cenas do cotidiano dos operadores do Direito. Os personagens são: uma juíza durona, que depois é promovida à Desembargadora; um réu que está sendo processado por um crime; outro juiz, que é professor de Direito Processual Penal e uma defensora pública, entre outros. É um retrato da realidade. Não tem glamour nenhum. É um choque de realidade, mas é muito instrutivo e revelador das engrenagens do sistema penal brasileiro. De quebra, também retrata o Rio de Janeiro com sua mazelas.

As cenas mais longas, retratos da realidade no fórum, nos convida a pensar. É um filme que convida à reflexão. Acompanha-se o julgamento de um réu. Carlos Eduardo foi denunciado e processado pela prática do crime de receptação (art. 180 do Código Penal). Acompanha-se o drama da família, a dor da mãe, que visita o filho na cadeia, chora e vai a um culto pedir forças. A luta da namorada que está grávida e enfrenta uma gravidez sem o companheiro, que está preso. A cena em que ela, grávida, sobe o morro é reveladora da dura luta da classe menos favorecida.

Maria Augusta Ramos apenas mostra a realidade, ela não aponta o dedo para acusar o sistema de justiça penal brasileiro. Não há panfletagem, acusações nem discursos veementes. Pelo contrário. O filme é calmo, quase silencioso. A câmera é uma testemunha das cenas da Justiça. A câmera entra nos recintos, nos fóruns, nos presídios, nas celas, nas casas dos juízes e defensores públicos. A diretora apenas mostra, expõe, revela como funciona o sistema penal. É um sistema que dá emprego e função para muita gente: promotores, juízes, defensores públicos, advogados, escriturários, e servidores da justiça, mas que não resolve o problema. É um girar a roda sem fim. Crime, julgamento e punição. Mas sem reeducação. A cada ano com novas e novas levas de condenados, de apenados, de reincidentes, sem que se eduque ou dê ocupação lícita ou novas oportunidades a essa gente. É claro que é necessário punir os criminosos e os malfeitores, mas é necessário dar a eles oportunidades de regeneração, de mudarem de vida.

Há uma cena chocante em que é mostrada a cela lotada em que fica o réu Carlos Eduardo, enquanto espera por seu julgamento. É uma carceragem para presos provisórios, isto é, aqueles que estão sendo processados criminalmente, mas ainda não foram condenados definitivamente, e tampouco conseguiram obter liberdade provisória por habeas corpus. Na carceragem referida não há espaço sequer para metade dos detentos ficarem deitados. Para caber todos os presos naquele exíguo espaço, todos os presos precisam ficar de pé para que alguns fiquem deitados em redes, no alto. Para quem trabalha com a Justiça Penal no Brasil, sabe-se que ela é um rolo compressor, onde os operadores do Direito atuam mecanicamente, dado o elevadíssimo número de processos, e que ela é seletiva, isto é, condena mais pobres do que ricos, mais negros do que brancos.

O filme só não mostrou o lado do Ministério Público e isso foi uma falha. O documentário revela o Ministério Público, o órgão acusatório no sistema brasileiro, como um trator, que vai oferecendo denúncia, sem discriminar muito e agindo pelos critérios da produtividade, pelo número de denúncias que um promotor consegue oferecer por mês. Isso até pode corresponder à realidade, mas o documentário não acompanhou o dia a dia de um promotor, como fez com um juiz e com a defensora pública.

De qualquer modo, trata-se de programa obrigatório para todos aqueles que desejam ver como funciona o Direito Penal na prática, na vida real, e não em teoria ou nos livros de doutrina. E revela o quanto ainda precisamos evoluir como sociedade. 

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