MILTON HATOUM - O Estado de S. Paulo
Há pouco tempo, quando passei por Natal, mal pude reconhecer a Baixa Ribeira,
que eu havia visitado nos anos 1970. Nas duas últimas décadas, construíram-se
torres em volta desse bairro antigo, um dos mais belos de Natal. Isso aconteceu
em outras cidades litorâneas: Maceió, Recife, Salvador, Rio, Fortaleza,
Vitória... Santos é mais um exemplo de total desfiguração arquitetônica, mas há
torres e fortalezas por toda a parte, até em pacatas cidades do interior.
Hoje mesmo, na capital paulista, a paisagem do entorno das casas modernistas
projetadas por Gregori Warchavchik está ameaçada pela construção de um
edifício-torre.
Há menos de vinte anos, um arquiteto teve a ideia luminosa de construir uma
torre de 125 metros perto do Masp. O colosso arquitetônico - uma ideia
felizmente abandonada - foi apelidado de "pirocão", mas esse lindo apelido nada
tem a ver com a metáfora de um ato inventivo, como sugeriu o poeta Gottfried
Benn ao dizer que a "palavra é o falo do espírito". O "pirocão" apenas traduz o
péssimo gosto verbal (e gestual) de certos arquitetos megalômanos.
Na verdade, sentimos horror à memória urbana. Casas e edifícios históricos de
municípios e capitais brasileiros foram e estão sendo desfigurados ou
destruídos; somos impotentes diante da avidez de algumas construtoras, que
demolem a arquitetura histórica e erguem torres de 40 andares. Mas essas
barbaridades não seriam praticadas sem a cumplicidade (às vezes secreta) de
funcionários públicos e políticos. Alguns bairros de São Paulo, se forem
adensados com a construção de novos edifícios-torres, vão parar de vez.
Mas há também pequenas barbáries, de grande alcance simbólico. Cinemas que
faziam parte da história cultural das cidades brasileiras foram demolidos.
Vários tornaram-se sedes de bancos, e outros, horrorosos templos religiosos, que
nem mesmo o diabo ousaria visitar.
Casas onde viveram poetas, artistas e escritores também foram destruídas. A
casa do poeta Thiago de Mello - um dos raros projetos de Lucio Costa na Amazônia
- está ameaçada pela ampliação de um porto. Na cidade alagoana de Viçosa, a casa
onde morou Graciliano Ramos foi demolida e deu lugar a um condomínio, cuja
fachada dispensa comentários. Agora só falta derrubar a igreja Matriz da cidade,
onde Graciliano escreveu boa parte de uma obra-prima da literatura brasileira:
S. Bernardo.
O escritor e crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes assinalou que o
descaso em relação à nossa História mais antiga está ligado a um profundo e
inconsciente horror ao passado: ódio à miséria social do nosso passado e à
opressão colonial. Ele usou uma expressão certeira ao dizer que "as decadências
prematuras são doenças do subdesenvolvimento". Hoje, a opressão é de outra
ordem, mas essas doenças persistem: basta ver os projetos de habitação popular,
onde os pobres são arrebanhados em abrigos vergonhosos. No Brasil, a moradia
popular é o avesso de uma vida digna.
Na crônica Os Arranha-Céus no Rio Não Fazem Bela Figura", Manuel Bandeira
escreveu: "O arranha-céu é uma fatalidade econômica, não é criação artística.
Tudo o que se pode fazer é meter a ridículo os snobes que inscrevem o
arranha-céu como cláusula de modernidade Quem manda construir arranha-céus está
se ninando para as artes, modernistas ou não. Quer é dinheiro".
O grande poeta publicou essa crônica em 1928, quando a natureza do Rio ainda
era soberana e estava longe de ser ameaçada pela proliferação de edifícios-torre
ou pirocões pós-modernos, que nada têm de artístico. Dane-se a história das
nossas cidades: na sanha devastadora do urbanismo bárbaro, só o céu é o limite.
(Milton Hatoum - coluna do dia 06/12/2013)
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