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sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Que República ?

 
No livro "Os bestializados..." o historiador José Murilo de Carvalho, grande estudioso da cidadania no Brasil, tenta desvendar que povo era aquele que morava no Rio de Janeiro na passagem da Monarquia para a República e nos primeiros anos desta. José Murilo quer saber: que república era esta ? Havia participação popular ? Havia cidadania ? Como era a relação do Estado com o cidadão ? O primeiro capítulo é uma descrição do Rio de Janeiro da época, com ênfase nas transformações políticas, sociais e culturais da então capital do Brasil. Depois de falar das consequências da abolição da escravatura, entre elas a explosão demográfica na capital, o historiador discorre sobre a precariedade da cidade, o surto de epidemias, as consequências da desastrosa política monetária do governo, que trouxe a especulação e a inflação generalizada. Também discorre sobre a grande agitação política que tomou conta da cidade, as primeiras greves, o autoritarismo do governo municipal, a perseguição aos capoeiras e aos anarquistas, a "salada ideológica" entre a intelectualidade e, entre outras coisas, o que chama de uma vitória do espírito do capitalismo desacompanhado da ética protestante. Em suma: as políticas públicas e as decisões vinham todas de cima para baixo; o número de eleitores era baixíssimo, as eleições eram fraudadas, os cafeicultores obtinham favores do governo, grande parte dos capitalistas faziam negócios onde a honestidade não era convidada e, por fim, a polícia era chamada para baixar o porrete nas classes potencialmente perigosas. No entanto...
 
"No entanto, havia no Rio de Janeiro um vasto mundo de participação popular. Só que esse mundo passava ao largo do mundo oficial da política. A cidade não era uma comunidade no sentido político, não havia o sentimento de pertencer a uma entidade coletiva, não havia uma comunidade política. A participação que existia era de natureza antes religiosa e social  e era fragmentada. Podia ser encontrada nas grandes festas populares, como as da Penha e da Glória, e no entrudo; concretizava-se em pequenas comunidades étnicas, locais ou mesmo habitacionais; um pouco mais tarde apareceria nas associações operárias anarquistas. Era a colônia portuguesa, a inglesa; eram as colônias compostas por imigrantes dos vários estados; era a Pequena África da Saúde, formada por negros da Bahia, onde, sob a matriarcal proteção de Tia Ciata, se gestava o samba carioca e o moderno carnaval. Eram as estalagens cuja população podia chegar a mais de mil pessoas. O cortiço de Botafogo, descrito por Aluísio Azevedo, possuía no final mais de 400 casas e constituía uma pequena república com vida própria, leis próprias, detentora de inabalável lealdade de seus cidadãos, apesar do autoritarismo do proprietário. Aluísio, aliás, fala expressamente na "república do cortiço". Ali se trabalhava, se divertia, se festejava, se fornicava e, principalmente, se falava da vida alheia e se brigava. Porém, à menor ameaça vinda de fora, todos esqueciam as brigas internas e cerravam fileiras contra o inimigo externo. Este inimigo era outro cortiço e, principalmente, a polícia. Frente à polícia, dono e moradores se uniam, pois estava em jogo a soberania e a honra da pequena república. Cortiço em que entrava polícia era cortiço desmoralizado. É profundamente irônico e significativo que a república popular do cortiço se julgava violada, derrotada, quando lá entrava o representante da república oficial. No romance, o cortiço consegue evitar a entrada da polícia, mas na vida real, dois anos após a publicação do livro, o cortiço Cabeça de Porco seria destruído em autêntica operação militar por ordem do republicano histórico Barata Ribeiro. O governo da República destruía as repúblicas sem integrá-las numa república maior que abrangesse todos os cidadãos da cidade."
 
CARVALHO, José Murilo de; "Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi; São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
 
 

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