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quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Os Maias: episódios da vida romântica

       "(...)
       Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:
       - Falhamos a vida, menino!
       - Creio que sim...Mas todo o mundo mais ou menos falha. Isto é, falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação. Diz-se: "vou ser assim, porque a beleza está em ser assim". E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, como dizia o pobre marquês. Às vezes melhor, mas sempre diferente.
       Ega concordou, com um suspiro mudo, começando a calçar as luvas.
       O quarto escurecia no crepúsculo frio e melancólico de inverno. Carlos pôs também o chapéu: e desceram pelas escadas forradas de veludo cor de cereja, onde ainda pendia, com um ar baço de ferrugem, a panóplia de velhas armas. Depois na rua Carlos parou, deu um longo olhar ao sombrio casarão, que naquela primeira penumbra tomava um aspecto mais carregado de residência eclesiástica, com as suas paredes severas, a sua fila de janelinhas fechadas, as grades dos postigos térreos cheias de treva, mudo, para sempre desabitado, cobrindo-se já de tons de ruína.
       Uma comoção passou-lhe na alma, murmurou, travando do braço do Ega:
       - É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!
       Ega não se admirava. Só ali no Ramalhete ele vivera realmente aquilo que dá sabor e relevo à vida - a paixão.
       - Muitas outras coisas dão valor à vida...Isso é uma velha idéia de romântico, meu Ega!
       - E que somos nós ? - exclamou Ega. - Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim ? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão...
       Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam só pela razão, não se desviando nunca dela, torturando-se para se manter na sua linha inflexível, secos, hirtos, lógicos, sem emoção até ao fim...
       - Creio que não - disse o Ega. - Por fora, à vista, são desconsoladores. E por dentro, para eles mesmos, são talvez desconsolados. O que prova que neste lindo mundo ou tem de ser insensato ou sensabor...
       - Resumo: não vale a pena viver...
       - Depende inteiramente do estômago! - atalhou Ega.
       Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua teoria da vida, a teoria definitiva que ele deduzira da experiência e que agora o governava. Era o fatalismo muçulmano. Nada desejar e nada recear...Não se abandonar a uma esperança - nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranqüilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, nesta placidez, deixar esse pedaço de matéria organizada, que se chama o Eu, ir-se deteriorando e decompondo  até reentrar e se perder  no infinito Universo...Sobretudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.
       Ega, em suma, concordava. Do que ele principalmente se convencera, nesses estreitos anos de vida, era da inutilidade de todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na terra - porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio Eclesiastes, em desilusão e poeira.
       - Se me dissessem que ali embaixo estava  uma fortuna como a dos Rothschilds ou a coroa imperial de Carlos V, à minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava o passo...Não! Não saia desse passinho lento, prudente, correto, seguro, que é o único que se deve ter na vida.
       - Nem eu! - acudiu Carlos com uma convicção decisiva.
       E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se aquele fosse em verdade o caminho da vida, onde eles, certos de só encontrar ao fim desilusão e poeira, não devessem jamais avançar senão com lentidão e desdém. Já avistavam o Aterro, a sua longa fila de luzes. De repente Carlos teve um largo gesto de contrariedade:
       - Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este apetite! Esqueci-me de mandar fazer hoje para o jantar um grande prato de paio com ervilhas.
       E agora já era tarde, lembrou Ega. Então Carlos, até aí esquecido em memórias do passado e sínteses da existência, pareceu ter inesperadamente consciência da noite que caíra, dos candeeiros acesos. A um bico de gás tirou o relógio. Eram seis e um quarto!
       - Oh, diabo!...E eu que disse ao Vilaça e aos rapazes para estarem no Braganza pontualmente às seis! Não aparecer por aí uma tipóia!...
       - Espera! - exclamou Ega. - Lá vem um "americano", ainda o apanhamos.
       - Ainda o apanhamos!
       Os dois amigos lançaram o passo, largamente, E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
       - Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma...
       Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras:
       - Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder...
       A lanterna vermelha do "americano", ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da  Ega uma esperança, outro esforço:
       - Ainda o apanhamos!
       - Ainda o apanhamos!
       De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para apanhar o "americano", os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela rampa  de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia."
 
(QUEIRÓS, Eça de; Os Maias: episódios da vida romântica; 2ª ed. - Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2012.)
 
 
 Obs.: o "americano" era um transporte ultra-moderna para aquela época. Era um "eléctrico".  
 
 

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